Organizar as contas

Carol Stange: Por que herdamos mais do que patrimônio – e como isso pesa nas nossas decisões financeiras

Herdamos crenças financeiras que moldam decisões adultas. Como reconhecer essas narrativas e construir um patrimônio alinhado ao presente


Carol Stange, colunista Bora Investir. Fonte: Arquivo pessoal.

Carol Stange

Planejadora financeira e consultora independente de investimentos, Carol Stange atua como multiplicadora do programa “Eu e meu dinheiro” do Banco Central e acumula as certificações CEA (Anbima) e CNPI-T (Apimec), além de ser Consultora CVM, criadora da marca “Como enriquecer seu Filho” e cofundadora do Instituto de Educadores Financeiros.


Existe uma herança que chega antes de qualquer inventário: aquelas frases que ouvimos na cozinha da infância e que, décadas depois, seguem tomando decisões no nosso lugar. A parte curiosa – e ligeiramente irônica – é que essas crenças financeiras familiares raramente passam por assembleia. Elas simplesmente se instalam, como aquele móvel antigo que ninguém ousa mudar de lugar.

O eco das gavetas antigas

Por trás de cada escolha financeira há uma história que a gente não contou direito. Quando trabalho com planejamento patrimonial, costumo ver esse roteiro silencioso: adultos experientes, com autonomia e renda, repetindo padrões que não escolheram – apenas herdaram.

Uma situação recorrente: alguém que investe defensivamente demais, não porque o cenário pede prudência, mas porque cresceu ouvindo que “dinheiro some rápido”. Essa frase, dita num contexto de instabilidade de décadas atrás, vira bússola para decisões feitas hoje em um ambiente econômico completamente diferente. É como usar o mapa da cidade antes do metrô para tentar atravessar o centro na hora do almoço.

A herança invisível no patrimônio visível

A parte curiosa é que essa bagagem emocional costuma aparecer justamente nos momentos mais técnicos: divisão de bens, sucessão, previdência, blindagem patrimonial. Parece contraditório, mas não é. Quanto mais racional o tema, mais sensível fica o terreno das crenças – e é aí que a gente percebe que, por trás de um investimento mal alocado ou de um seguro subdimensionado, pode existir uma narrativa familiar sobre risco, mérito ou escassez.

Recentemente, conversei com uma família que evitava discutir testamento porque “falar sobre isso atrai coisa ruim”. Enquanto isso, o patrimônio crescia, os filhos seguiam em fases diferentes da vida e a estrutura jurídica… parada. O curioso é que ninguém realmente acreditava na superstição – mas ela servia como desculpa confortável para adiar conversas difíceis.

Autoridade técnica ajuda, claro: quando explico como uma estratégia sucessória reduz conflitos e protege a autonomia dos herdeiros, o racional se impõe. Mas só funciona quando o emocional para de gritar.

O comportamento que passa de geração em geração

Dinheiro ensina – mesmo quando não queremos aprender. E, quase sempre, ensina com humor involuntário.

Lembro de um cliente que fazia questão de reinvestir religiosamente todos os rendimentos, mas não conseguia gastar um centavo com algo que realmente desejava. A trava não era econômica; era biográfica. O pai dele dizia que “luxo é porta de saída do bom senso”. Décadas depois, o filho seguia repetindo o lema – mesmo podendo pagar tranquilamente pelas pequenas indulgências da vida adulta.

É nesse ponto que o planejamento financeiro se encontra com a psicologia comportamental: só conseguimos projetar o futuro quando reconhecemos quem está apertando os botões do presente. Às vezes, não é o adulto. É a criança que aprendeu que dinheiro é frágil.

O gesto de maturidade que cabe no aqui e agora

A herança que mais pesa é justamente a que não percebemos. Quando damos nome às crenças que atravessaram gerações, o patrimônio finalmente respira – e nós também. É curioso como, ao separar o que é nosso do que apenas repetimos, decisões antes espinhosas ganham clareza, quase leveza.

Talvez essa seja a verdadeira passagem entre gerações: não só entregar bens, mas libertar quem vem depois dos medos que nunca foram deles. No fim das contas, planejamento financeiro é isso – uma conversa honesta com o passado para que o futuro deixe de andar mancando.

*As opiniões contidas nessa coluna não refletem necessariamente a opinião da B3

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