Perdeu dinheiro com bets? Saiba como se recuperar financeiramente
Entenda o que está por trás do vício em apostas online e como organizar sua vida financeira
Por Isabel Lima, especial para o Bora Investir
O crescimento das “bets” no Brasil acendeu o alerta em acadêmicos de saúde mental e no mercado financeiro, mas quem realmente sente os efeitos desse fenômeno na pele são os apostadores. O vício em jogos de azar já levou 86% dos apostadores a contrair dívidas e 64% deles estão com o nome negativado no Serasa, conforme apontou pesquisa do Instituto Locomotiva. Apostar não é uma boa ideia para a saúde financeira de uma pessoa, como já foi constatado em diversos artigos e entrevistas de especialistas. Mas para quem já perdeu dinheiro com as “bets”, como se recuperar financeiramente?
O primeiro passo apontado por psicólogos e planejadores financeiros ouvidos pelo Bora Investir é assumir o problema. Isso porque cerca de 64% dos apostadores usam sua renda principal para realizar as apostas, conforme dados levantados pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC). As pessoas deixam de comprar roupas, ir ao supermercado, adquirir produtos de higiene e beleza e até abrem mão de cuidados com saúde e medicações.
Para a psicóloga especialista em economia Vera Rita de Mello Ferreira, a tese do vencedor do Prêmio Nobel de Economia Daniel Kahneman explica bem o problema das “bets”. “Corremos riscos porque a gente desconhece da probabilidade daquilo dar errado, não porque a gente necessariamente tem apetite por risco”, pontua Vera, que é membro do membro do Comitê de Pesquisa da International Network for Financial Education (INFE) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A pesquisadora acredita que a parte mais difícil é assumir que esses gastos compulsivos existem. Para um apostador encarar a realidade, é preciso entender por que ele aposta.
O que leva uma pessoa a apostar?
A vulnerabilidade financeira leva pessoas a apostarem, mostrou o Instituto Locomotiva. “Ganhar dinheiro” foi a principal razão apontada pelos entrevistados (53%), um volume bem maior que “diversão/entretenimento/prazer” (22%), adrenalina (10%) e “passar o tempo” (7%).
O fato dos apostadores encararem as “bets” como uma forma de gerar renda é uma armadilha. Pelo aspecto psicológico, o apostador entra em um ciclo de dependência, pontua o neuropsicólogo Rodrigo Maciel. Quando uma pessoa aposta, a adrenalina faz o cérebro liberar dopamina, um hormônio que promove o bem-estar.
“É um comportamento semelhante ao efeito psicológico da recompensa, porque o nosso cérebro é programado para buscar recompensas, ele é ativado por essa expectativa de ganhar”, explica Rodrigo.
Esse efeito é amplificado quando o apostador tem pequenos ganhos e passa acreditar que pode faturar ainda mais. “Quando perde, você no geral se expõe a mais riscos e isso tudo funciona como uma isca que prende a pessoa no ciclo das ‘bets'”, destrincha a psicóloga Vera Rita.
Esse processo leva o indivíduo a ignorar os dados de realidade e cai de cabeça no viés de confirmação, explica Vera. Somado a isso, ainda há o desconhecimento. Para a especialista, o desejo de resolver a vida rapidamente provoca o viés do presente, que acrescenta outro nível de dificuldade em reconhecer que as escolhas têm consequências. “A gente sempre se ilude, me engana que eu gosto”, enfatiza Vera. A falta de análise sobre as chances de ganhar torna o apostador ainda mais vulnerável, principalmente com apostas esportivas.
A pesquisa da SBVC mostrou que os apostadores concentram 77% das apostas em futebol, seguido de jogos de slot (50%), cassino ao vivo (25%), basquete (21%), vôlei (20%). Já na hora de tomar a decisão de apostar, a pesquisa aponta que o principal ponto considerado é um atleta ou time favorito (53%), notícias sobre lesões de jogadores (29%), influencer de apostas esportivas (25%). Análises estatísticas (52%), Palpites dos amigos (44%) e Hobby (32%) também apareceram no levantamento.
Para o neuropsicólogo Rodrigo Maciel, as pessoas apostam pela curiosidade, mas os gatilhos são variados. “Para regular as emoções, as pessoas podem recorrer às apostas, álcool, comida. Isso acontece até um ponto em que não haverá necessariamente um gatilho, mas o cérebro estará condicionado a buscar essa resposta.
Vício no incerto não é novidade
Apesar da bola da vez serem as “bets”, a crença em alternativas para ganhar dinheiro rápido e fácil não é novidade para quem estuda comportamento financeiro. Claudia Yoshinaga, pesquisadora e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), percebe esse padrão comportamental na época do Boi gordo, pirâmide financeira que deixou mais de 30 mil investidores no prejuízo no final dos anos 1990. Além desse caso, Cláudia lembra do Faraó dos Bitcoins, outro esquema de pirâmide financeira que lesou cerca de 89 mil pessoas.
Entretanto, ela entende que esses casos apresentavam barreiras maiores para o público geral. No caso das apostas, a digitalização facilitou muito o processo. “Quase todo mundo tem um celular com internet, então fazer esse tipo de movimento, gastar e apostar, ficou muito simplificado”, explica a pesquisadora.
Como as bets estão em todos os lugares – redes sociais, televisão, jogos esportivos – elas acabam alcançando ainda mais gente. Esse cenário também é percebido pela Supervisora do Ambulatório do Jogo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), Mirella Martins de Castro Mariani, que lida com uma crise sem precedentes de adoecidos pelo vício em apostas.
A disponibilidade facilitada fez com que o perfil de pacientes que procuram o ambulatório mudasse. “Na época que os bingos funcionavam legalmente, a procura por tratamento era de pessoas na faixa etária entre 40 e 45 anos”, ela recorda. Desde 2018, a demanda fez crescer a fila de espera por tratamento com um público mais amplo.
Vera Rita também percebe uma ampliação no perfil dos jogadores. “Em geral são homens, de idade entre 24 e 45, mas tem muitas crianças, adolescentes”, ela alerta.
Bets não, aposta!
O sistema de apostas online ganha a roupagem de “bets” no Brasil. A expressão de origem inglesa significa “aposta”, mas pode passar a percepção de ser algo menos arriscado do que realmente é.
Para a pesquisadora da FGV Claudia Yoshinaga, as propagandas espalhadas pelo cotidiano das pessoas passam a ideia de ser algo lúdico, divertido. “O nome que popularizou muito no Brasil é ‘bet’. Não se fala muito de aposta. ‘Bet’ até parece um negócio menos comprometedor de renda do que aposta”, pontua ela.
Na experiência de Clay Gonçalves, planejadora financeira da SuperRico, os apostadores precisam mudar a abordagem. “Se as chances [de ficar rico] são mínimas, é preciso olhar com um jogo, de maneira que você não comprometa seus planos a longo prazo”, ela pontua.
Como identificar o vício em apostas?
Todos são passíveis de desenvolver vício em apostas, de crianças a jovens, adultos a idosos. Por se tratar de um estímulo químico que afeta o cérebro acessível na palma da mão, a atenção aos sinais tem que ser dobrada.
Conforme a pesquisa do Instituto Locomotiva, os jogadores relataram descontrole ao apostar: 45% dos entrevistados admitem que as apostas esportivas “já causaram prejuízos financeiros”, 37% dizem ter usado “dinheiro destinado a outras coisas importantes para apostar online” e 30% afirmaram ter “prejuízos nas relações pessoais”.
Segundo percebido pela psicóloga Mirella Mariani, um apostador pode ter como experiências desde pequenas ocorrências negativas até consequências mais graves, principalmente questões financeiras e saúde emocional psicológica. “A variabilidade de danos nem sempre é proporcional à quantidade de apostas nas quais uma pessoa está participando”, alerta Mirella.
O tempo de envolvimento, dinheiro gasto e tipo de jogo são fatores que acabam chamando a atenção, mas são os únicos sinais que podem indicar uma dependência. Na análise da psicóloga Vera Rita, do Instituto de Psicologia Econômica e Ciências Comportamentais, é preciso ficar atento às prioridades da pessoa.
Embora existam transtornos psiquiátricos relacionados ao vício, Vera pontua que são minoria. Para ela, a síndrome de FOMO – Fear of Missing Out, medo de ficar de fora – pode explicar o comportamento de pessoas que não teriam tendência a apostar, mas acabam envolvidas nas “bets”.
Apesar disso, a pesquisa do Instituto Locomotiva ouviu dos entrevistados que jogar também causa sentimentos positivos. 37% dos jogadores ouvidos relataram sentir felicidade e 11% alívio. Para 42%, as apostas esportivas online “são uma forma de escapar de problemas ou emoções negativas.”
Caso ainda esteja difícil de identificar o vício, é possível observar as consequências dele. Conforme levantamento realizado pelo Ambulatório do Jogo do Instituto de Psiquiatria da USP, os sinais mais comuns, causados pelo jogo podem incluir:
- Dificuldade de relacionamento;
- Problemas de saúde (sono, depressão, ansiedade, falta de atenção, tabagismo, alcoolismo);
- Sofrimento emocional (psicológico);
- Problemas financeiros, como falhas em pagamentos, empréstimos, uso de agiotagem;
- Problemas de rendimento no trabalho ou no estudo.
Como se recuperar financeiramente após ‘bets’?
Passo 1: reconhecer o problema
Antes de resolver qualquer problema, é necessário reconhecer que ele existe. Esse passo pode envolver a família e pessoas de confiança, mas pode ser uma tomada de consciência solitária também.
Lembre-se: não há milagre de enriquecimento rápido! A promessa é tentadora, mas não condiz com qualquer traço de realidade.
Passo 2: buscar ajuda
Se você já envolveu família ou alguém de confiança no passo anterior, ficará mais fácil buscar ajuda. A planejadora financeira Clay Gonçalves alerta para a importância de ter apoio emocional, pois tendemos a confiar cegamente no nosso autocontrole. Busque também um profissional!
“Ter o apoio de pessoas próximas para você falar: ‘poxa, me controla, me ajuda a não cair de novo nesse círculo vicioso’, eu acho que é um passo importante”, opina Claudia, pesquisadora da FGV.
Neste momento vale atendimento psicológico, entregar as contas bancárias para alguém que vai monitorar seus gastos e fazer um controle de entradas e saídas para entender quanto você tende a gastar com as bets.
“Suporte profissional é o primeiro passo para conseguir uma redução ou para acabar com esse comportamento”, pontua o neuropsicólogo Rodrigo Maciel. Com terapia psicológica, o paciente consegue entender o que o leva a apostar e pode traçar um plano de como lidar com o desejo de apostar, em busca de um maior equilíbrio.
Passo 3: comunicar alguém de confiança
Se você já passou pelos passos anteriores e ainda não falou com alguém de confiança sobre o problema, chegou a hora. Para sair de um ciclo vicioso, é imprescindível ter o apoio de familiares ou amigos.
Passo 4: parar de apostar
Já que você já aceitou que o vício em apostas é um problema sério, com gatilhos mentais dos mais variados e que não é possível confiar no auto-controle, pare de apostar!
“Não existe jogar controlado”, afirma a psicóloga Mirella Mariani. O apostador deve evitar todo contato com as apostas, seja bloqueando os aplicativos no celular ou colocando senhas para acessar esses sites.
Passo 5: reorganizar a vida financeira e traçar planos
Se você perdeu suas economias de anos ou se endividou, tenha uma abordagem prática. Essa é a hora de avaliar quais mudanças de padrão de vida você pode fazer para sair do aperto e deixar as contas em dia. Pense e organize quais são suas prioridades e o que pode esperar.
Neste passo, a ajuda de um planejador financeiro pode ser importante. Esse profissional vai te ajudar a definir suas prioridades e orientar como negociar contratos de dívidas. Será trabalhoso e demorado, mas é possível.
Trace um plano a curto e médio prazo para suas finanças. Você abrirá mão de algumas coisas, mas é melhor fazer isso o quanto antes do que cair em um poço ainda mais profundo. Pense em formas alternativas de gerar renda e corte gastos. Essa mudança no padrão de vida será momentânea, não desista.
Onde encontrar um profissional financeiro?
Para quem está com a renda totalmente comprometida, pode ser difícil separar um valor para tratamento psicológico e financeiro. Entretanto, existem alternativas gratuitas que o apostador pode tentar. É comum que universidades e faculdades de psicologia ofereçam tratamento gratuito. Para descobrir como funciona, entre em contato com o curso de psicologia mais próximo de você e questione sobre laboratórios universitários.
Além disso, Mirella Mariana lembra que o Sistema Público de Saúde oferece tratamento gratuito para toda a população, com psiquiatras e psicólogos. Os Centros de Atenção Psicossocial álcool e outras drogas (CAPS AD) são centros especializados para dependentes e estão espalhados por todo o Brasil.
Além disso, existem Grupos de apoio como Jogadores Anônimos, espaços onde se cria uma rede de apoio e o apostador conhece outras pessoas que enfrentam o mesmo problema.
Quem é de São Paulo também pode tentar atendimento no programa de transtornos impulsivos da USP. O próprio paciente precisa telefonar para o ambulatório e passar por uma pré-triagem telefônica para entrar na fila de espera, explica Mirella. No ambulatório, o apostador tem acesso a psicólogos, neuropsicólogos, enfermeiro, clínico geral e psiquiatra.
Com a confirmação do diagnóstico, o paciente passa por psicoeducação e inicia um tratamento específico, que pode envolver sessões privadas e coletivas. No fim do tratamento, o apostador ainda tem acesso a uma rede de apoio.
Em paralelo a isso, os apostadores compulsivos podem acessar o programa “Tamo Junto” da SuperRico, que oferece atendimento a famílias em situação de inadimplência financeira. “Existe um cadastro que a pessoa faz, passa por uma análise, e se estiver enquadrada, pode ser atendida por um planejador financeiro e receber orientações”, explica Clay, da SuperRico.
Além disso, a própria FGV, Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e a B3 oferecem cursos gratuitos ensinando as pessoas a lidarem com a inadimplência e como investir.
Para conhecer mais sobre finanças pessoais e investimentos, confira os conteúdos gratuitos na Plataforma de Cursos da B3. Se já é investidor e quer analisar todos os seus investimentos, gratuitamente, em um só lugar, acesse a Área do Investidor.