Entrevistas

“Mercado está em polvorosa com o aumento do risco fiscal nos juros, câmbio, inflação e PIB”, diz Felipe Salto

Em entrevista ao Bora Investir, economista-chefe da Warren Investimentos falou sobre o impacto no mercado da mudança na meta fiscal do Brasil e das tensões no Oriente Médio

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos
Felipe Salto, economista-chefe da Warren Investimentos

O mercado financeiro global tem enfrentado dias de estresse desde a ameaça de espalhamento do conflito no Oriente Médio, após uma ofensiva do Irã contra Israel no fim de semana passado. Israel acusa o Irã de financiar o grupo terrorista Hamas.

No cenário do investidor brasileiro, não bastasse a turbulência mundial, o governo anunciou uma mudança na projeção fiscal do país. A nova previsão é de déficit zero para 2025, e não mais de superávit de 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), como previsto até o ano passado.

A alteração, que está na Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) enviada ao Congresso, indica que a equipe do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, prevê déficit fiscal durante todo o governo do presidente Lula – apesar da previsão de superávit de 0,25% do PIB em 2026.

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Isso acontece porque a equipe econômica acredita que as metas serão atingidas por estarem dentro do intervalo previsto pelo Arcabouço Fiscal. Mas as projeções mostram que as despesas devem superar as receitas em R$ 29,1 bilhões em 2025 e em R$ 14,3 bilhões em 2026.

Em entrevista ao Bora Investir, o economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, explica que um pequeno superávit pode vir do abatimento de precatórios, dívidas já reconhecidas pela Justiça e que o governo tem de pagar. O adiantamento desses pagamentos libera espaço nas contas.

“O governo projeta um déficit, abate um conjunto grande de gastos e diz que vai entregar saldo equilibrado, mas não vai. Para mim, isso é um problema. (…) Para a dívida, o que importa é o déficit antes do tal abatimento. “Logo, se o objetivo era partir do zero, em 2025, o resultado deficitário calculado antes do abatimento tinha de ser zero, percebe? Ora, vamos colocar os pingos nos is”.

A deterioração das contas públicas aponta que o País só deve voltar ao atual patamar de dívida/PIB em uma década. Isso aumenta as incertezas quanto aos compromissos financeiros, faz o mercado cobrar mais caro para emprestar ao governo e os juros futuros sobem.

“O mercado está em polvorosa porque precifica o aumento do risco fiscal nos juros, na taxa de câmbio, na inflação e nas perspectivas de crescimento econômico. Esse movimento aumenta o gasto com juros do governo, afasta investimentos produtivos e combina-se com um risco mais alto para culminar em um dólar mais caro dada a desvalorização do real. É risco inflacionário na veia e crescimento econômico mais baixo”, explica Salto.

No cenário internacional, o ataque do Irã em resposta ao bombardeio israelense contra a embaixada iraniana em Damasco, na Síria, traz consequências ligadas ao preço do petróleo, ao comércio internacional e ao câmbio.

“O BC do Brasil já está receoso com a questão fiscal. Isso combinado com o cenário de economia americana mais apertada, com o Fed devendo postergar a redução dos juros, deve limitar a ação do nosso BC. Seria muito ruim se o ciclo de juros tivesse de ser interrompido em níveis ainda elevados”, conclui o economista-chefe da Warren Investimentos. Acompanhe a entrevista completa a seguir.

Bora Investir: O mercado financeiro começou o 2º trimestre num ambiente conturbado. No cenário interno tivemos a mudança na meta das contas públicas para 2025. O que mais pesou foi a alteração da meta ou o não esforço do governo para atingi-la?

Felipe Salto: Para mim, o que mais pesou foi a alteração para algo muito diferente do zero prometido. Quando o PLDO foi anunciado, na segunda-feira, eu me surpreendi. Vi, na tabela do governo, uma linha com o primário [saldo entre receitas e despesas, antes do pagamento dos juros da dívida] projetado negativo. Já, na linha da meta fiscal, eu vi o zero prometido.

Na verdade, o governo anunciou um déficit primário [resultado negativo] de R$ 29,1 bilhões. Somente ao abater despesas de precatórios consegue chegar a um pequeno superávit. Bem, o que nos impede de raciocinar que o déficit poderia chegar a R$ 39,9 bilhões, no limite, seguindo essa lógica, preservada a meta zero? Nada. Mas de que adiantaria? Ou é zero ou não é. Qual o real compromisso estabelecido? O primeiro passo para conquistar a credibilidade é transparência. Isso vale para preservar a credibilidade conquistada.

O Novo Arcabouço Fiscal, a meu ver, foi um passo importante. A regra é boa, porque não peca pelo excesso de rigidez do antigo teto de gastos, que morreu de inanição, e contém um limite para o crescimento das despesas e uma meta para os esforços fiscais primários. Mas, como eu sempre disse, ela precisa ser cumprida. O Brasil é pródigo em criar regras, mas precisa ter mais apreço pelo seu cumprimento.

O abatimento dos precatórios não é uma novidade. O STF decidiu que, até 2026, todos os valores excedentes ao antigo limite anual deveriam ser pagos, mas estariam livres das metas fiscais. Agora, usar esse subterfúgio para dizer que se está em equilíbrio nas contas? Aí não dá.

O governo projeta um déficit, abate um conjunto grande de gastos e diz que vai entregar saldo equilibrado, mas não vai. Para mim, isso é um problema. Dá para corrigir, sim, mas foi um passo errado. Depois de vários acertos, quero registrar.

O erro, eu explico, é pelo seguinte: para a dívida, o que importa é o déficit antes do tal abatimento. Logo, se o objetivo era partir do zero, em 2025, o resultado deficitário calculado antes do abatimento tinha de ser zero, percebe? Ora, vamos colocar os pingos nos is.

Bora Investir: Ao trazer a questão fiscal para o dia a dia dos investidores, por que as mudanças na meta mexem tanto com o humor do mercado via bolsa e dólar?

Felipe Salto: Se a revisão da meta, em si, já representaria um risco, neste momento, imagine fazer dessa forma. Foi um erro. Falo para você e para meus amigos que estão no governo, pelos quais tenho grande respeito e que, vejo, estão muito bem-intencionados e estão acertando mais do que errando até aqui.

Por exemplo, a quantidade de medidas aprovadas para recompor receitas públicas. Só a MP 1185 [que define regras para as empresas usarem benefícios fiscais já concedidos pelos estados na arrecadação do ICMS] já valeu o ano passado inteiro. Ali foi dedo na ferida. O Ministro Haddad acabou com um benefício injusto, de duas cabeças, que dilapidava impostos federais sem a anuência da União, a partir de um benefício do ICMS.

Nessa matéria fiscal, não tem escapatória, é preciso escolher um caminho e não aceitar desvio de rota. Se você está caminhando no inferno, não pare, já dizia o maior político da história, Winston Churchill. 

O mercado está em polvorosa desde a apresentação do PLDO, mas já um pouco antes, porque ele precifica o aumento do risco fiscal nos juros, na taxa de câmbio, na inflação e nas perspectivas de crescimento econômico. Economia é um sistema de vasos comunicantes.

Se você dá indicações de que o equilíbrio fiscal poderia ter se tornado algo menor na estratégia do governo, por exemplo, com essa história de abater precatórios para entregar um déficit e dizer que está cumprindo meta zero, então o mercado vai cobrar mais para financiar o governo. Os títulos ficam mais caros desde já. Os juros dos títulos públicos, para diferentes prazos, dão um salto, como estamos vendo.

Esse movimento aumenta o gasto com juros do governo, afasta investimentos produtivos e combina-se com um risco mais alto para culminar em um dólar mais caro, dada a desvalorização do real. É risco inflacionário na veia e crescimento econômico mais baixo. Não estou dizendo que isso vai se materializar. Para bem e para mal. Dá tempo de reverter a piora das expectativas. Ações concretas ajudam.

O governo precisa fazer o feijão com arroz. E é para ontem: metas de resultado primário críveis, evidenciadas de modo transparente, a partir de uma trajetória bem projetada de receitas públicas, que poderia se associar a uma política de contenção do crescimento da despesa pelo simples respeito às regras do Novo Arcabouço Fiscal, sem invencionice como a cogitada recentemente e já aprovada até na Câmara. Me refiro àquela flexibilização de R$ 15,7 bilhões.

O jogo caminhava bem. Esses ruídos não precisavam ter ocorrido, mas são plenamente reversíveis, a meu ver. Há tempo para isso e gente da melhor qualidade no governo para conduzir boas políticas públicas e uma boa estratégia de política fiscal. Em paralelo, vejo coisas estruturais, como a reforma do Estado, ganhando corpo, no Ministério da Ministra Esther Dweck [Gestão e da Inovação em Serviços Públicos]. Espero que avance rápido. 

Bora Investir: A mudança na meta sinaliza que o governo deixou para depois o prometido ajuste das contas – passo essencial para queda de juros, economia aquecida e geração de empregos? Como será o cenário macroeconômico do país a partir de agora?

Felipe Salto: Não é bem assim. Não é tudo ou nada. O movimento do PLDO foi claramente um erro, com essa história de abatimento. Reduzir de 0,5% para zero, por si só, não teria nada de absurdo. A questão foi a forma e esse uso equivocado do abatimento de precatórios da meta fiscal, uma prerrogativa dada pela decisão do STF no ano passado.

Acho que o governo precisa mostrar resultado. O resultado da arrecadação do primeiro trimestre foi muito bom. Pelas minhas contas, considerando dados preliminares que coletei no SIGA-Brasil para o mês de março, mostram alta real de 9,6% para a receita líquida frente ao primeiro trimestre de 2023. Ora, é bastante! E a Cofins, o PIS e o IPI estão crescendo para além de efeitos atípicos. Podemos ter boas surpresas ao longo do ano na arrecadação.

É nisso que o governo precisa focar. Segurar a âncora de curtíssimo prazo, que é a meta zero, de 2024, e desfazer essa confusão criada com o PLDO de 2025. Não será fácil, porque é a velha história da dificuldade para conquistar confiança e da facilidade para perdê-la. De todo modo, se não deixar descarrilar, tem salvação. Não precisamos entrar no cenário pessimista mergulhando fundo e sem volta, não. Eu vejo que erros acontecem e pode haver uma correção de rota, sim.

Agora, não vamos nos iludir, o desafio fiscal é gigantesco e a [relação] dívida/PIB cresce a olhos vistos. Cumpra-se a regra fiscal aprovada ontem. O Novo Arcabouço Fiscal é um recém-nascido. Acabou de aprender a engatinhar. As suas primeiras palavras precisam ser responsabilidade fiscal. Não é a melhor regra do mundo, longe disso. Mas, se cumprida, pode produzir, pelo meu cenário, uma dívida que aumenta a taxas decrescentes e pode estabilizar em horizonte de dez anos.

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Bora Investir: Como fica a meta de déficit zero para 2024? Pode haver mudanças também?

Felipe Salto: Não recomendo. É preciso amarrar a mão de Ulisses ao mastro do navio, antes que ele seja enfeitiçado pelo canto das sereias e morra afogado. O gasto público tem o seu fascínio, não é mesmo? Ele sempre parece ter o condão de gerar crescimento e, até certo ponto, em dado prazo, ele gera. Mas depois cobra o preço. É preciso evitar a tentação.

Estamos indo bem, neste ano, com uma arrecadação crescendo bastante e as medidas tomadas no ano passado surtindo efeito. Tributação de fundos fechados, das offshores, nova Lei do CARF, créditos de ICMS na base do PIS e da COFINS acertados, fim da subvenção dupla baseada nos benefícios do ICMS, regulamentação das compensações tributárias e outras.

Entendo que é preciso segurar a meta zero, que é uma espécie de âncora de curtíssimo prazo. Apegar-se a ela e mostra o compromisso com a entrega de um bom resultado fiscal, revertendo a má impressão causada pelo PLDO de 2025. O ponto de partida importa. Quanto melhor o resultado de 2024, tanto mais saudável para a dinâmica das contas a partir do ano que vem.

Bora Investir: No mercado financeiro global, a preocupação é com o impacto da escalada das tensões no Oriente Médio. Como um possível conflito entre Irã e Israel pode prejudicar os investidores?

Felipe Salto: As consequências estão relacionadas aos efeitos sobre o preço do petróleo, em um primeiro momento, mas também aos desdobramentos para o balanço de pagamentos, ao comércio internacional e à taxa de câmbio. O Brasil poderia sofrer muito com uma retração de fluxos de investimentos, que seriam influenciados pelo que se convencionou chamar de ‘flight to quality’, onde o dinheiro migra para os países de menor risco e maior segurança, particularmente o país emissor da moeda de reserva internacional.

Os emergentes tendem a sofrer relativamente mais. A desvalorização do real causada por esse movimento nos fluxos de capitais afetaria a inflação doméstica e os juros teriam de subir rapidamente para contê-la. As perspectivas de crescimento econômico cairiam fortemente e teríamos um período de dificuldades pronunciadas para a população que mais depende do Estado.

A Conta Capital e Financeira do balanço de pagamentos brasileiro é bastante aberta, ao contrário da conta de comércio, o que torna a nossa moeda mais susceptível a movimentos como os decorrentes de eventos como a exacerbação das tensões no Oriente Médio com impactos nos fluxos de capitais internacionais.

O lado positivo é o nível de reservas internacionais, de fato, bastante elevado. Mas ele também não é infinito e, neste momento, estamos passando por um teste na questão fiscal, com toda essa trapalhada no PLDO de 2025.

Bora Investir: De que forma essas incertezas podem postergar o início do ciclo de cortes de juros nos Estados Unidos?

Felipe Salto: Os dados econômicos dos EUA estão melhores que o esperado e isso, por si só, postergará a decisão de cortes por parte do Federal Reserve, a meu ver. Um contexto de escalada da guerra no Oriente Médio pioraria o quadro, no sentido em que as economias mais desenvolvidas e menos arriscadas, sobretudo EUA, poderiam ser mais beneficiadas.

Bora Investir: No Brasil, as incertezas globais diante da crise no Oriente Médio também impactam no dólar e nos combustíveis, vulgo escalada da inflação. Essa alta pode inviabilizar o ciclo de corte de juros por aqui?

Felipe Salto: O que se pode avaliar é que a tendência seria preocupante para o Brasil, porque um retardamento nas decisões de juros, por lá, afetaria os juros domésticos, sem contar outros fatores, claro. O fiscal, principal deles.

Além disso, os preços de insumos como combustíveis estariam na lua, em razão das restrições de oferta causadas pela guerra. Os desdobramentos sobre outras commodities seriam inevitáveis, a meu ver, pelas próprias restrições ao comércio internacional, encarecimento de custos de transporte e de outros insumos, sem mencionar as próprias distorções nos fluxos de capitais e de financiamento para os países produtores e importadores. Seria péssimo para nós e para o mundo, é claro. Os mais pobres sofrem mais e o Brasil não estaria de fora do grupo mais afetado, infelizmente.

O Banco Central já está receoso com a questão fiscal. Escreveu, na última comunicação, que queria ver a preservação do compromisso do governo com as metas fiscais. Bem, já não verá, como estamos discutindo. Isso combinado com o cenário de economia americana mais apertada, com o Fed devendo postergar a redução dos juros, deve limitar a ação do Banco Central do Brasil. Não vai ser fácil.

Seria bom que o lado fiscal não atrapalhasse, desta vez. Manter o mínimo de compromisso com plano de voo anunciado, o Novo Arcabouço Fiscal, as metas, a trilha já traçada. É só isso. Não precisa reinventar a roda.

Seria muito ruim se o ciclo de juros tivesse de ser interrompido em níveis ainda elevados, sobretudo porque ainda estamos operando acima da taxa neutra de juros, isto é, a política monetária está exercendo papel contracionista sobre a atividade.

Bora Investir: Como deve se comportar o mercado financeiro daqui em diante? Como o investidor pode se proteger?

Felipe Salto: No Brasil, entendo que uma maior volatilidade pode acometer os preços dos principais ativos, em razão das incertezas quanto à questão fiscal. Dependendo das próximas ações do governo, isso poderá persistir ou não.

O dólar já está pressionado e poderá ficar um pouco mais. Mas o Banco Central tem instrumentos para operar contra o sobe-e-desce desenfreado e é papel dele fazer isso, aliás, não atuando contra patamares, mas preservando certas condições de previsibilidade. Os juros podem ganhar um ritmo novo, talvez, de queda mais lenta, o que acabaria favorecendo novamente o bom e velho investimento em renda fixa, mas não acho que é tendência de prazo mais longo. Estamos em meio a um nevoeiro e tudo fica mais difícil de visualizar. O Brasil tem boas condições estruturais.

Os fatores externos e internos que poderiam dar errado estão ensaiando movimentos ruins e isso assusta. O externo não depende de nós, mas temos bons frascos de medicamento de qualidade para enfrentar momentos mais penosos, se ocorrerem. Quanto ao fiscal, minha esperança é uma reversão do que se fez nos últimos dias. Foi pouco, então não é tão difícil corrigir isso. A boa vontade é grande. A competência, maior.

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