“Questão ambiental é o principal tema da humanidade no século XXI”, afirma Eduardo Giannetti
Em entrevista ao Bora, economista e membro da ABL alertou sobre o necessário ajuste no sistema de preços para refletir os custos ambientais
“Vamos ter que repensar profundamente quais são os valores relevantes para uma vida humana bem vivida”. Num mundo em que o impacto das mudanças climáticas já começou, essa frase do economista Eduardo Giannetti da Fonseca revela a total importância da preservação do meio ambiente para o nosso futuro e o do planeta.
Em entrevista exclusiva ao B3 Bora Investir, o filósofo e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) reforçou a urgência da humanidade em lidar com as mudanças climáticas – principal tema a ser enfrentado no século XXI – e a necessidade de ajustar o sistema de preços para refletir os custos ambientais.
“Nós vamos ter que encontrar uma forma de trazer para dentro do sistema de preços o impacto ambiental das nossas escolhas como produtores e consumidores”.
O professor é um dos primeiros pensadores brasileiros a trazer a questão ambiental para o debate econômico. Giannetti foi responsável pelos planos econômicos das campanhas à presidência de Marina Silva (Rede) em 2010, 2014 e 2018.
O economista vê o Brasil no centro das discussões ambientais. Para Giannetti, a Amazônia dá ao país um grande potencial para desenvolver a Bioeconomia. Isso quer dizer, usar a floresta economicamente e ao mesmo tempo fazer um trabalho de preservação do patrimônio ambiental – o que demanda investimento de todos os países.
“Os fundos soberanos que já existem são, de alguma maneira, um embrião desse reconhecimento de que, se o mundo quer a Amazônia íntegra, ele vai ter que pôr a mão no bolso. Ele vai ter que arcar com parte do custo de preservação desse patrimônio”.
Em relação aos combustíveis fósseis, o economista e filósofo acredita que o Brasil tem um enorme potencial de se tonar líder na transição energética. No entanto, precisa fazer as escolhas certas. Recentemente o governo brasileiro tem discutido a possiblidade de exploração de petróleo na bacia da foz do Rio Amazonas.
“A essa altura do século XXI, fazer mais uma aposta de grande porte e alto risco ambiental não é um caminho razoável. Não é algo que me pareça pertinente e prioritário nesse momento”, concluiu.
Confira abaixo a entrevista completa e assista aos vídeos dos principais trechos da conversa com Eduardo Giannetti da Fonseca.
Bora Investir: As mudanças climáticas são uma realidade com eventos extremos cada vez mais comuns – ondas de calor e mudanças em regimes de chuva, por exemplo. A questão ambiental é o desafio do século 21?
Eduardo Giannetti: Sem dúvida, a questão ambiental está hoje colocada como o principal tema que a humanidade enfrenta no século XXI. Nós estamos em meio a um processo de mudança climática que já está em andamento. E não está nada claro, a essa altura, como é que vamos conter um processo que, se continuar por mais tempo no caminho em que está, vai nos levar a uma situação realmente difícil até de imaginar pelas suas implicações.
Bora Investir: Como a humanidade chegou nesse ponto?
Eduardo Giannetti: Nós chegamos a isso por uma deficiência do sistema econômico, que não sinaliza corretamente para produtores e consumidores o impacto ambiental cumulativo das nossas decisões. O sistema de preços, ele não contabiliza, não dá os sinais corretos para que as nossas decisões levem em conta o impacto cumulativo ao longo do tempo das escolhas que nós estamos fazendo.
Vou dar um exemplo muito simples: pegar um avião para cruzar o Atlântico. Por que a passagem aérea tem o seu preço? O bilhete aéreo, em um ambiente competitivo, vai refletir basicamente o custo de produção do serviço, ou seja, depreciação do equipamento, combustível consumido, preço de extração e produção, serviço de bordo, uso do aeroporto, a remuneração do capital empatado no negócio.
O CO2 emitido no trajeto não é considerado um custo. Ele não tem preço. É como se fosse alguma coisa de graça, mas não é. Hoje uma coisa extremamente extravagante do ponto de vista ambiental é pegar um avião e cruzar o Atlântico. Um passageiro emite mais CO2 durante uma viagem transatlântica do que um indiano durante um ano no meio rural. E o passageiro não paga nada por isso. O sistema de preços é completamente omisso em relação ao impacto cumulativo das nossas escolhas como produtores e consumidores.
Um outro exemplo é uma usina termoelétrica a carvão. O preço do quilowatt vai refletir o custo de extração do carvão, do capital envolvido no processo, as máquinas, a distribuição de energia. O CO2 emitido não vai ser contabilizado.
Então, esse é o problema fundamental que nos trouxe até aqui. Nós vamos ter que encontrar uma forma de internalizar, de trazer para dentro do sistema de preços o impacto ambiental das nossas escolhas como produtores e consumidores. Significa que vai ficar tudo mais caro? Não. Significa que os preços relativos vão mudar. As coisas que são ambientalmente onerosas vão ficar relativamente mais caras, no comparativo com as coisas que são ambientalmente menos onerosas. Aí sim vamos ter os estímulos corretos, mas acho que ainda estamos longe desse processo.
Bora Investir: Esse custo ambiental embutido no preço já começou a ser colocado em prática em algum lugar do mundo?
Eduardo Giannetti: Sim, já começou a ser implementado individualmente por alguns países. O Canadá, por exemplo, está muito avançado nesse processo de precificação do carbono emitido. Agora, para ter abrangência global, há três atores que são fundamentais: Estados Unidos, China e União Europeia. Eu acredito que esses três atores vão ter que, de alguma maneira, chegar a um tipo de acordo em relação a essas práticas. Não vai ser tudo ao mesmo tempo. Alguns setores vão ser precificados antes do que outros. Mas o ideal é caminharmos para um sistema de preço que não se resuma e não se restrinja apenas aos custos diretamente monetários de produção.
Bora Investir: Os países sabem da importância de preservar o meio ambiente. Temos noticiado as Conferências do Clima, Tratado de Kyoto, discussões no G20. Por que, então, esses acordos não são efetivamente cumpridos?
Eduardo Giannetti: O grande problema de todos esses acordos é o que se chama na língua inglesa de ‘enforcement’, implementação. Nós não temos uma governança global que atribua penalidades aos signatários que não cumpram o acordo.
O que aconteceu com o Protocolo de Kyoto [1º tratado internacional para controle da emissão de gases de efeito estufa] foi extremamente ilustrativo disso. Países que não eram signatários tiveram melhor desempenho do que os que eram signatários, quando você compara o que no final das contas aconteceu. Então os que assinaram quiseram ficar bem na foto. Se comprometeram com metas que pareciam auspiciosas, mas na prática o resultado ficou muito aquém do desejado. A consequência disso é que o problema vai sendo jogado para frente, vai se tornando cada vez mais grave.
Esses acordos que estabelecem metas, se eles não tiverem algum mecanismo de penalização para aqueles que não os cumprem, eles vão continuar sendo letra morta.
Estamos diante de duas coisas com as quais a humanidade não está apta e familiarizada. Primeiro são situações que envolvem um número muito grande de países que precisam agir em sintonia. Tem um problema de coordenação, pois não temos instrumentos e instituições globais que sejam capazes de garantir o ‘enforcement’.
Segundo: estamos lidando com horizontes de tempo que são muito mais longos do que o nosso processo decisório. As democracias no Ocidente lidam com prazos normalmente de um mandato. Um governo dificilmente vai se preocupar com medidas que vão ter efeito daqui a 50, 100 anos. Porque o incentivo dele, num sistema democrático, é maximizar as chances de uma reeleição. O horizonte é muito curto.
Uma questão como mudança climática e transformações do meio ambiente exige, do ponto de vista multilateral, uma coordenação muito abrangente entre países, principalmente os grandes atores. E, ao mesmo tempo, um horizonte de tempo com uma profundidade que os nossos sistemas políticos e instituições não estão aptos a atender.
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Bora Investir: O Brasil tem um papel central na questão ambiental, pois possui a maior floresta tropical do mundo, a Amazônia. Hoje o desmatamento está menor, mas ainda preocupa. Essa conta da preservação não deveria incluir todas as nações?
Eduardo Giannetti: O grande desafio ambiental brasileiro, sem dúvida, é a preservação dos nossos biomas. Temos uma matriz energética relativamente limpa, somos uma potência alimentar e temos um patrimônio ambiental único no planeta.
Está sendo feito um esforço muito consistente pelo governo Lula e especialmente no ministério do Meio Ambiente, liderado pela Marina Silva, para reverter o descalabro que foi o governo Bolsonaro, que simplesmente deu o sinal verde para se desmatar, avançar no garimpo ilegal – inclusive com a ocupação do território por grupos milicianos e do crime organizado. Então agora é um trabalho de retomada e de volta a uma experiência bem-sucedida que foi o governo Lula no primeiro mandato, em que tivemos resultados muito positivos.
Segundo Giannetti, é preciso cobrar pelos serviços ambientais que a floresta presta ao planeta
A questão da Amazônia coloca um desafio que é a bioeconomia, quer dizer, como você vai usar a floresta economicamente, ao mesmo tempo em que faz um trabalho consistente de preservação do patrimônio ambiental. Eu acho que isso demanda muita pesquisa, que ainda não foi feita. É uma pesquisa em ciência e desenvolvimento que só o Brasil pode fazer, porque nós estamos falando de uma biodiversidade e de uma ambiência ecológica que é muito característica daquela região. Portanto, não é o tipo de tecnologia ou de ciência que você importa de outros países. Ela tem que ser desenvolvida aqui.
Eu acho que está na hora de se avançar na questão dos serviços ambientais da floresta. O Brasil é uma potência alimentar e a oferta de alimentos pela qual o Brasil é responsável depende primeiro da estabilidade geopolítica do planeta. Porque se tiver um colapso da nossa produção, o mundo vai realmente sofrer um fortíssimo abalo geopolítico, além da estabilidade macroeconômica. Porque se houver uma queda da produção alimentar e o Brasil de alguma maneira não puder oferecer o que vem conseguindo fazer em termos de produção de commodities e alimentos, vai ter um impacto inflacionário fortíssimo. Isso levaria a uma série de efeitos em cadeia como o aumento de juros e uma recessão que ninguém deseja ver acontecendo.
O problema é que ninguém paga pelos serviços ambientais. Nós sabemos que a condição do Brasil de potência alimentar está diretamente vinculada à preservação da floresta amazônica. Porque todo o regime pluviométrico do centro-oeste está diretamente atrelado ao fluxo dos ventos e da umidade que vem do norte do país, os chamados rios voadores.
Nós vamos ter que encontrar uma maneira – e eu acho que aí é uma questão a ser desenvolvida e detalhada do ponto de vista financeiro – de se pagar pelos serviços ambientais que a floresta amazônica está prestando para o planeta e para o agronegócio brasileiro, que depende dela.
Eu acho que um agronegócio minimamente esclarecido conseguirá perceber que a viabilidade do seu negócio depende de uma gestão responsável e competente do patrimônio ambiental, que é o sistema ecológico da Amazônia. Como cobrar por esses serviços ambientais? É uma questão que eu acho que demanda um trabalho que ainda não foi feito. Mas eu tenho certeza de que é um serviço ambiental relevante e que há disposição e recursos no mundo para que isso seja feito.
Os fundos soberanos que já existem são, de alguma maneira, um embrião desse reconhecimento de que, se o mundo quer a Amazônia íntegra, ele vai ter que pôr a mão no bolso. Ele vai ter que arcar com parte do custo de preservação desse patrimônio. Acho que a melhor utilização desse recurso é exatamente a pesquisa para ver como é que nós podemos usar o patrimônio ambiental de modo consciente, inclusive economicamente. Porque a ideia de manter a Amazônia como um santuário também não é uma coisa factível e sequer desejável. É preciso ter atividade relevante e bioeconomia que dê à Amazônia também um sentido econômico.
Bora Investir: O senhor citou capacidades econômico-ambientais enormes do Brasil e investimentos que precisam ser feitos. Como trazer recursos externos?
Eduardo Giannetti: Essa é uma questão que vai envolver certamente recursos públicos, especialmente no caso da Amazônia (no tocante à fiscalização, controle e monitoramento), mas vai exigir capitais privados nacionais e externos.
Recentemente foi anunciado um mecanismo financeiro, que eu considero bastante interessante, que é a oferta de algum tipo de proteção cambial para os investidores externos que vierem com projetos de longo prazo econômica e ecologicamente balizados.
Um dos grandes fatores que tolhem o interesse do capital externo é justamente o risco cambial de qualquer investimento para um horizonte de tempo de dez ou mais anos, como é o caso de um projeto de investimento desse tipo. Se você tiver um mecanismo de hedge ou proteção cambial, como foi desenhado pelo BID [Banco Interamericano de Investimento] e com a chancela do Banco Central do Brasil, você mitiga ou pelo menos atenua em grande medida esse risco e pode se tornar um fator relevante de atração de capitais.
Bora Investir: O senhor tem uma relação de anos com a ministra Marina Silva. Hoje no governo existe uma ala desenvolvimentista disposta, por exemplo, a explorar petróleo na Margem Equatorial, na foz do Rio Amazonas. Cedo ou tarde essa balança pode rachar?
Eduardo Giannetti: É um equilíbrio, como em todo o governo, que abriga no seu modus operandi vários grupos com interesses e agendas diferentes.
Eu não sou absoluta e terminantemente contra qualquer projeto de desenvolvimento na Amazônia. Pelo contrário. Já falei que temos que fazer pesquisa no sentido da bioeconomia. Agora, a essa altura do século XXI, fazer mais uma aposta de grande porte e alto risco ambiental – como a exploração de petróleo na foz do Amazonas – não é um caminho razoável. Não é algo que me pareça pertinente e prioritário nesse momento.
Uma falácia que nós repetidamente temos visto no Brasil, é a de que o petróleo é o passaporte do desenvolvimento e vai dar às populações mais desfavorecidas, finalmente, os recursos que lhes permitirão sair da situação em que estão. Você pega os Estados que receberam grandes aportes de royalties de petróleo na exploração do pré sal, especificamente o Rio de Janeiro e outros municípios, olhe os indicadores sociais. Não aconteceu rigorosamente nada. Em alguns casos, estão até pior do que os seus vizinhos.
Portanto, essa falácia – que é uma espécie de legitimação espúria de projetos desenvolvimentistas desse tipo – não vinga. Todas as vezes que se vendeu projetos desse tipo em nome de alguma agenda social, o resultado não se concretizou. Por que seria diferente agora? Eu não vejo como e nem por quê.
Bora Investir: Seguindo no tema combustíveis fósseis. O mundo tem discutido a transição energética, inclusive petroleiras iniciaram investimentos em energia limpa. Como está o Brasil nessa questão?
Eduardo Giannetti: O Brasil tem um enorme potencial de ser líder na transição para uma economia de baixo carbono. Nós temos um potencial no campo da energia que é realmente muito diferenciado no mundo. O potencial de energia eólica, solar, terras, fluxos de água doce, biodiversidade. O Brasil é realmente, além de ser uma potência alimentar, uma potência ambiental. E essas duas coisas estão ligadas.
Agora, se nós não soubermos usar isso em nosso proveito e não tivermos uma gestão à altura da nossa responsabilidade, nós vamos sacrificar, não só a presente geração, mas as gerações futuras que vão herdar um país empobrecido ambientalmente, coisa que ninguém deseja que aconteça.
Bora Investir: Diante de todos os temas ambientais que discutimos na entrevista e suas consequências para o mundo e a economia, o senhor está otimista quanto a todas essas demandas?
Eduardo Giannetti: Um número que me chama muito a atenção foi estimado com base em critérios muito técnicos pelo economista indiano radicado na Inglaterra, chamado Partha Dasgupta, que publicou um artigo na revista Science.
Vamos arredondar a população mundial para sete bilhões de habitantes. Se você estratificar esses sete bilhões pelo consumo, o bilhão que está no topo da pirâmide é responsável por 50% das emissões de CO2, ou seja, um bilhão dos sete, metade.
Os três bilhões que estão na classe média são responsáveis por 45% das emissões globais. E os três bilhões que estão na base da pirâmide de consumo, metade dos quais sem acesso à energia elétrica, são responsáveis por 5% das emissões globais. É este grupo que já está sofrendo de maneira muito desproporcional o impacto causado pelas emissões do bilhão, que está no topo, e dos três bilhões que estão no meio do caminho.
A situação inviável na qual nós estamos é que os três bilhões que estão na base só pensam em alcançar a classe média. Os três bilhões que estão no meio só pensam em chegar ao topo para viver como o bilhão que está no topo da pirâmide de consumo. Essa conta não fecha de jeito nenhum.
Nós vamos ter que repensar muita coisa, inclusive o sistema de preços, como enfatizei na nossa conversa, mas também valores. Por tudo o que nós sabemos de pesquisas sobre bem-estar a partir de um certo nível de renda, que não é lá tão alto assim, o bem-estar humano não cresce à medida que continua avançando o nível de renda e de consumo.
Será que faz sentido essa corrida armamentista em que estão todos permanentemente tentando e imaginando que a sua vida será indefinidamente melhor quanto mais ganharem e quanto mais consumirem? Eu acredito que esse caminho está esgotado.
Nós vamos ter que repensar profundamente quais são os valores relevantes para uma vida humana bem vivida. O caminho do consumo não é eticamente satisfatório e hoje é ambientalmente suicida. São duas frentes que se combinam. Não faz sentido na ótica do bem-estar e é simplesmente proibitivo na ótica de sustentabilidade ambiental. Esse é o desafio que está colocado.
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