ESG

“É preciso atualizar os modelos financeiros para que contemplem as variáveis ESG”, diz Marina Cançado

Fundadora da Converge Capital fala sobre o que é preciso fazer para incentivar os investimentos sustentáveis

Marina Cançado
"O Brasil sempre liderou essa agenda de energia renovável", diz Marina Cançado. Foto: Leca Novo/Divulgação

Há uma lacuna de US$ 18 trilhões entre os compromissos atuais com a transição para uma economia verde e o investimento necessário para alcançar a meta de zerar as emissões de carbono até 2030, estima o Boston Consulting Group. De outro lado, o crescente número de eventos climáticos extremos, como as enchentes no Rio Grande do Sul, mostram a urgência do tema. Muito tem se falado sobre o potencial do Brasil em liderar essa agenda sustentável no mundo, mas o País ainda caminha lentamente.

A saída para esse cenário, defende Marina Cançado, está na colaboração. “É uma agenda muito coletiva, a gente precisa de orquestração entre setor público, setor privado, academia, mercado financeiro”, diz ela, que é fundadora da Converge Capital, uma empresa de articulação de investimentos sustentáveis e de impacto, criada em 2019. Marina Cançado é ex-sócia da XP, onde ajudou a estruturar a área de investimentos sustentáveis, e atua em diferentes frentes para incentivar o fluxo de capital para soluções climáticas brasileiras.

Nessa agenda, o papel dos investidores e do mercado não é apenas o de financiar, mas também de pressionar as empresas a buscarem soluções mais sustentáveis e a descarbonização. “Na minha visão, o mercado financeiro, os bancos, fundos de pensão, family offices, gestoras de investimento têm um papel muito importante em pressionar, em trabalhar junto para que essa transição das empresas mais poluentes aconteça”, diz Marina Cançado.

Em entrevista ao Bora Investir, ela comentou as expectativas com a presidência do Brasil no G20 e como sede da COP no ano que vem e falou das medidas necessárias para incentivar os investimentos sustentáveis. Confira:

Bora Investir: Este ano tem sido bem emblemático para o Brasil, com muitos eventos climáticos importantes como as enchentes no Rio Grande do Sul e os incêndios no Pantanal. Você imagina que isso pode acender um alerta e incentivar mais os investimentos em soluções climáticas sustentáveis?

Marina Cançado: Sem dúvida, a pauta climática entrou para a conversa. Entrou na casa das pessoas, na mesa de jantar, na conversa com os amigos no bar. Essas tragédias trouxeram a importância de falar sobre mudanças climáticas. No entanto, há pesquisas acadêmicas diversas ao redor do mundo que mostram que a gente, como ser humano, tem a tendência de esquecer fácil das coisas. Então, por mais que tenha aumentado a consciência coletiva, não necessariamente ter mais informações leva à ação. Tem esse gap entre saber e agir. Então, acho que falar sobre o assunto é um passo muito importante, mas não significa necessariamente que isso vai levar à ação.

Agora, a gente está vivendo um momento de convergência de muitas situações. Tem essa questão do Rio Grande do Sul, mas tem também o Brasil na presidência do G20, tem uma COP que será no Brasil. Talvez a conjunção desses vários eventos facilite que essa consciência se torne ação.

Mas para isso, a gente também precisa entender os desafios. A gente precisa começar a olhar do ponto de vista mais pragmático, de dados, para entender. Não dá para generalizar. O capital está indo para algumas áreas, para outras está mais difícil. Em alguns temas tem mais capital internacional, em outros o mercado financeiro brasileiro já está mais preparado, ou aberto. Precisamos também começar a olhar para o que está acontecendo dentro de cada setor.

Bora Investir: Quais os setores que têm mais capital nacional e quais têm mais capital internacional?

Marina Cançado: O Brasil sempre liderou essa agenda de energia renovável. Quando a gente fala de eólica, solar, já temos custos competitivos, muitas empresas atuando e isso começa a crescer. Temos uma grande indústria brasileira de biocombustível, que agora, inclusive, está enveredando para a linha dos combustíveis sustentáveis para a aviação.

Então, a energia já é um setor em que o Brasil viveu 20 anos de construção, de amadurecimento e já tem uma organização setorial. Já é mais uma forma normal para o private equity e fundos de infraestrutura investir em projetos de energia. Claro que você tem uma grande quantidade e diversidade de produtos. O hidrogênio verde, por exemplo, precisa de um marco regulatório e alguns incentivos. E por isso que, nesse caso, você precisa de um advocacy, de um trabalho junto de política pública. O próprio combustível sustentável da aviação já é viável tecnologicamente, mas muitas vezes aumenta o custo das passagens. Nesse caso, há a discussão de quem vai pagar a conta: vai ser o consumidor ou vai ter algum incentivo, subsídio de curto prazo?

Onde a gente vê que o Brasil ainda não está maduro e tem majoritariamente capital internacional são as soluções baseadas na natureza. Estamos falando de reflorestamento, projetos de crédito de carbono, em sistemas agroflorestais, modelos de agricultura regenerativa, bioeconomia. São temas em que o mercado financeiro brasileiro ainda está tateando.

Até porque a Europa está muito focada na agenda de transição energética, então eles acabam vendo no Brasil um país muito relevante e bem posicionado para liderar as soluções baseadas na natureza. Grande parte dos investidores internacionais que têm compromisso de investir em natureza vê o Brasil como o destino para esse capital. E eu espero que a vontade desse investidor internacional nesse tema traga mais o mercado financeiro local para também estruturar e buscar investir nesse tipo de temática.

Bora Investir: Você falou sobre o combustível sustentável para aviação, que já é viável do lado da tecnologia, mas aumenta os custos. Usando isso como um exemplo, muitas das tecnologias mais sustentáveis são mais caras inicialmente, e com o tempo podem se tornar economicamente mais eficientes. Como preencher a lacuna entre esses dois pontos?

Marina Cançado: Muitas empresas, para descarbonizarem suas operações, vão precisar repensar sua tecnologia, repensar seu processo produtivo, repensar sua fonte de energia, etc. Caso elas não façam isso, no caso da Europa, vão ter de comprar créditos de carbono. Então, se você não investe para se transformar, você vai acabar tendo que pagar de alguma outra forma.

Eu estava agora há pouco discutindo como trazer para as taxas de importação e exportação o valor de intensidade do carbono. Se o produto emite mais carbono, vai ter um imposto maior no comércio internacional. Isso vai acabar afetando a vantagem competitiva das empresas que não conseguirem [se transformar].

Eu acho que não tem outro caminho a não ser fazer essas transformações. E, se bem feita, se a empresa faz uma descarbonização, pode até gerar créditos de carbono, vender esses créditos de carbono no mercado e, com isso, financiar essa nova tecnologia. A gente viu isso acontecer com as empresas de energia solar e eólica no Brasil. Elas faziam um projeto que ainda era mais caro, mas conseguiram gerar créditos de carbono de energia e vender no mercado global. Por exemplo, toda a compensação de emissões da Copa do Catar foi feita com créditos de energia.

É muito importante a gente olhar para as coisas como um sistema e entender que, em alguns casos, sim, tem um investimento. Mas não fazer o investimento tem outro custo, como perder vantagem competitiva, perder mercado. Quando a gente vê a curva da inovação, a tecnologia sempre começa com um nível maior de incerteza, que se reflete, eventualmente, num custo maior. E isso vai caindo. O que eu acho que a gente está vivendo é que curvas que demoravam, talvez décadas para cair o preço, vão ser muito mais rápidas, muito mais exponenciais.

Bora Investir: Olhando do lado do investidor, muitas vezes há a ideia de que investir em empresas sustentáveis ou em títulos sustentáveis vai ter um retorno menor. Existe essa troca entre sustentabilidade e retorno? E como os investidores no Brasil veem essa questão?

Marina Cançado: Muitos riscos de a empresa não entrar nessa jornada de descarbonização, seja risco de perder espaço de mercado, seja risco operacional, ou de ter uma destruição na sua cadeia de valor porque houve enchente em uma região, não estão contabilizados em grande parte dos modelos financeiros hoje. Então, o cálculo do risco que não está correto. A gente precisa fazer uma atualização dos modelos financeiros que projetam risco, retorno, crescimento de empresa para que eles contemplem as variáveis ambientais, sociais e de governança. Essa agenda ESG no Brasil é muito recente. E hoje ainda são poucos bancos e gestoras que têm uma metodologia robusta, profunda, de trazer para a conta essas variáveis. Então, o meu ponto é que muitas coisas ainda não estão refletidas no preço ou não estão refletidas na análise.

E muitas vezes o investidor também acha que a empresa sustentável é a Natura. Mas a gente tem muito mais empresas tradicionais, e muitas delas estão fazendo sua jornada de descarbonização. Inclusive porque, muitas vezes, hoje você começa a ter gestores de investimento que, inclusive, optam por ter no seu portfólio essas empresas nos setores intensivos em emissões, porque eles sabem que a Natura já nasceu com o DNA de sustentabilidade. É melhor eu entrar numa empresa de um setor tradicional, e como investidor pressionar essa empresa para mudar e, eventualmente, vou poder capturar esse valor gerado. Então, acho que também a gente precisa desmistificar que investir em ESG é só investir em empresas que estão no top performance ESG.

Na minha visão, o mercado financeiro, os bancos, fundos de pensão, family offices, gestoras de investimento têm um papel muito importante em pressionar, em trabalhar junto para que essa transição das empresas mais poluentes aconteça. A gente precisa de mudanças muito profundas e rápidas. A pressão vai ter de vir de todos os lados: do regulador, do investidor, do consumidor. Senão, a gente não vai se mover na velocidade e na magnitude que precisa.

Bora Investir: Você comentou que está otimista pela conjunção de fatores, como a presidência do Brasil no G20 e o fato de o Brasil ser sede da COP ano que vem. Por outro lado, há bastante tempo se fala sobre o Brasil ser um hub de soluções climáticas. Isso está se concretizando?

Marina Cançado: Algumas coisas estão se concretizando, mas é pouco perto do posicionamento que a gente poderia ter para o mundo, da transformação, velocidade e magnitude da transformação que o Brasil poderia estar fazendo em várias dessas indústrias.

Então, acho que a resposta é que tem coisas acontecendo, mas estamos muito longe do que o Brasil potência na agenda climática.

Bora Investir: E como caminhar mais rápido?

Marina Cançado: O que falta é uma coordenação em torno de uma agenda comum. Inclusive o G20 vai terminar o ano com recomendações e muitas delas são coisas que a gente precisa endereçar. Mesma coisa acontece na COP: o que a gente vai falar, como vamos nos mostrar? Acho que a gente precisa ter uma decisão coletiva, criar um pitch comum do que a gente quer mostrar e valorizar e destacar do país. Entender o que a gente precisa que venha de fora, o que a gente precisa de cada setor no Brasil. E aí se organizar, se orquestrar para fazer acontecer. As peças estão aí, tem um monte de coisa acontecendo, mas são muitas iniciativas isoladas, descoordenadas.

Essa é uma agenda de muita colaboração, é uma agenda muito coletiva. E cada uma dessas soluções depende de todo um ecossistema. A gente precisa de orquestração entre setor público, setor privado, academia, mercado financeiro, e também precisamos de uma voz, uma narrativa, um pitch bem coordenado.

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