Organizar as contas

TDAH, TEA e organização financeira: quais os desafios e estratégias para lidar com o dinheiro?

Olhar específico para as dificuldades de pessoas neurodivergentes pode ser a chave para o sucesso no planejamento financeiro

Ter uma boa relação com o dinheiro vai muito além dos números. Cuidar das finanças requer controlar impulsos, manter um controle dos gastos, seguir à risca um cronograma para não atrasar os boletos e nem se endividar. Envolve também lidar com o conceito abstrato de dinheiro e futuro. Pode ser chato, parece difícil. E o desafio pode ser ainda maior para adultos com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) ou autistas. No mundo das finanças comportamentais, a relação das pessoas neurodivergentes com o dinheiro tem atraído interesse, mas o tema ainda é pouco estudado.

“Lidar com dinheiro já é desgastante para quem é neurotípico. Para quem é neurodivergente, é muito mais estressante e demanda ainda mais esforço e energia”, resume Lai Santiago, planejadora financeira que tem se especializado no atendimento às pessoas com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) e autistas nível de suporte 1.

Um artigo de 2021 escrito pelos planejadores Meghaan Lurtz e Andrew Komarow traz luz ao tema e mostra o quanto ainda é incipiente a pesquisa sobre essa população. “É comum ver artigos sobre planejamento financeiro que discutem as necessidades de um determinado grupo (por exemplo, mulheres ou populações sub-representadas), muitas vezes com o objetivo de promover a inclusão e abordar necessidades específicas de planejamento desses grupos”, diz. Mas “outro grupo que pode se beneficiar de uma atenção especial e personalizada é o das pessoas neurodivergentes que podem viver por conta própria – um grupo menor quando comparado com grupos neurodivergentes em geral, mas que necessita especificamente de apoio financeiro especializado e aconselhamento que lhes permita vidas independentes e plenas”.

Por que TDAH e TEA precisam de estratégia financeira diferenciada

Entre oscilações de atenção e impulsividade, encontrar estratégias financeiras eficazes pode parecer uma tarefa intimidadora. No entanto, um número crescente de especialistas está desenvolvendo abordagens adaptadas que não apenas reconhecem, mas também buscam aproveitar os pontos fortes desses indivíduos no mercado financeiro.

“Os planejadores financeiros e seu relacionamento com seus clientes, neurodivergentes ou não, podem ser uma grande fonte de apoio e capacitação. Quando um planejador financeiro trabalha com uma pessoa neurodivergente e sua família, ele pode ajudar esse indivíduo a viver de forma independente e, talvez o mais importante, com autoconfiança e autoestima. Todos têm o direito de buscar e alcançar o bem-estar financeiro”, diz o artigo.

Paulo Bertolucci, neurologista e professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), concorda que pessoas com Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) têm dificuldades específicas, e que podem se beneficiar de um olhar especializado para suas características. “O planejamento financeiro pode ser colocado em uma hierarquia em três etapas. Na primeira, você tem que garantir o dia a dia, ou seja, pagar os boletos. Na segunda, você tem que pensar ‘e se houver uma emergência?’, então você tem um controle, uma reserva para emergências. E a terceira é o futuro”, diz. “Pessoas com TDA têm dificuldade nos três itens”.

Há até mesmo uma dificuldade no diagnóstico financeiro. “Eu vejo que quando uma pessoa que é TDAH ou uma pessoa que é autista está endividada ou está desorganizada financeiramente, é muito mais difícil sair desse ciclo”, diz Lai. “Às vezes é difícil até mesmo identificar o problema, porque existe uma dificuldade de percepção nas pessoas autistas, enquanto no caso do TDAH, há a dificuldade de atenção e de manutenção da rotina. Há pessoas que não têm uma real noção do problema”.

O caminho até o diagnóstico – e a especialização

O interesse de Lai pela relação entre pessoas neurodivergentes com o dinheiro não veio à toa. Ela já trabalhava como planejadora financeira e era especializada em finanças comportamentais quando, dois anos atrás, depois de uma “longa caminhada”, recebeu o diagnóstico como autista nível de suporte 1 com altas habilidades. Não bastasse isso para acender a curiosidade sobre o tema, seu companheiro tem TDAH.

“A partir daí, eu comecei a perceber que a maioria das pessoas que me buscava na internet ou para fazer consultoria eram pessoas neurodivergentes. Às vezes a gente fala que os neurodivergentes se encontram de alguma maneira”, conta a planejadora. Lai começou então a estudar mais a fundo as dificuldades desse público, em especial autistas nível de suporte 1 e pessoas com TDAH, em lidar com o dinheiro.

Na experiência dela, esse olhar mais especializado faz a diferença. “Eu vejo que cada vez mais, em todas as áreas, as pessoas estão buscando soluções mais específicas para as suas necessidades. E um planejador financeiro que trabalha da maneira tradicional, olhando apenas para os resultados matemáticos, dados e conceitos da economia, muitas vezes não consegue provocar o resultado necessário em situações em que a gente está diante de uma pessoa com neurodivergência”, diz ela. “A gente precisa entender do comportamento, as dificuldades de formação de hábitos e de tomada de decisão por quem é neurodivergente para criar soluções que são personalizadas”.

“Um hábito financeiro bom é muito ingrato. Você precisa dizer não no presente. Você precisa sofrer no presente para ter a recompensa lá na frente. Mesmo que seja uma semana, um mês. Enquanto que, com o mau hábito financeiro, você recebe a recompensa na hora. É difícil a lutar contra isso”, diz ela.

Isso não quer dizer que só o planejamento financeiro especializado basta. Lai defende ser fundamental que as pessoas mantenham também um acompanhamento de saúde mental.

“A gente não consegue resolver, dentro de uma consultoria financeira, um problema de compulsão, por exemplo. A gente não consegue resolver a raiz da coisa. A gente vai trabalhar com as ferramentas que vão assessorar aquela pessoa e simplificar a tomada de decisão, o caminho para a tomada da boa decisão financeira, mas muitas vezes ela está com um problema de fundo, que precisa de um cuidado muito sensível dentro do ambiente de um acolhimento de saúde mental.”

Por outro lado, conforme explica o professor Bertolucci, mesmo quem tem acompanhamento médico também pode se beneficiar do planejamento financeiro. Os remédios, diz ele, podem até ajudar a aumentar o tempo de atenção dos pacientes, mas não é suficiente para ensinar a tomar boas decisões financeiras.

“A pessoa tem que ser treinada a se organizar financeiramente, e a cumprir o plano, se manter dentro do que já foi planejado. Isso dá certo, mas não pense que é fácil”, afirma Bertolucci. E o aconselhamento pode trazer grandes benefícios. “O plano e acompanhamento deve ser feito, preferencialmente, com a ajuda de outra pessoa”.

Neurodivergentes e finanças: diferentes relações

Cada pessoa – neurotípica ou neurodivergente – tem suas características e é difícil generalizar. Mas é possível traçar alguns comportamentos que costumam ser mais comuns a pessoas com TDAH e no espectro autista.

“Por um lado, no TDAH, uma pessoa que tem uma tendência a um comportamento hiperativo impulsivo, tem uma tendência a gastar muito mais”, diz Lai. “No outro, entre quem faz parte do espectro autista, há quem tem dificuldade de experimentar coisas novas, dificuldade de estar diante de sistemas novos, de rotinas diferentes”, explica.

Autismo nível de suporte 1

  • Dificuldade de abstração. “O conceito do dinheiro, do futuro e de investimentos de longo prazo, às vezes são difíceis de serem assimilados. E a gente precisa transformar isso em um conceito que é facilmente interpretado para uma coisa que precisa ser feita no presente”, diz Lai. Para contornar essa dificuldade, ela busca criar métricas palpáveis e uma linguagem visual que mostre os avanços da pessoa rumo a um futuro financeiro estável.
  • Rigidez na rotina. Na consultoria financeira, muitas vezes é preciso fazer ajustes nas despesas, receitas, ou até mesmo na forma de controlar as entradas e saídas de dinheiro. “Quando a gente propõe a inserção de uma ferramenta de controle ou alguma mudança específica que pode vir a beneficiar financeiramente aquela pessoa, é muito mais difícil para quem é autista estar aberto a mudar um pouco”, diz a planejadora.
  • Sensibilidade sensorial. “Normalmente, o autista está muito sobrecarregado sensorialmente e a gente precisa fazer com que o ambiente da consultoria seja o mais leve possível”, conta Lai. O cuidado em garantir esse conforto é essencial para que a pessoa se sinta bem para discutir questões delicadas como dinheiro.
  • Dificuldades sociais. Segundo a planejadora, resolver questões burocráticas que envolvem ir a um banco, por exemplo, podem ser mais desafiadoras para autistas. Isso tem repercussão até em atividades mais cotidianas. “Tem muitas clientes minhas que, quando vão até uma loja fazer uma compra, acabam comprando o que a vendedora oferece, por dificuldade de dizer que não é aquilo que elas querem”, diz.
  • Interesses específicos. “Se as pessoas têm um interesse muito grande num tema específico, é difícil elas se interessarem por outras coisas, como o dinheiro. Mas, em contrapartida, a gente pode associar esse assunto que é de muito interesse da pessoa ao ambiente financeiro”, diz Lai.

TDAH

  • Impulsividade. “Há vários tipos de TDAH, e um deles é o hiperativo impulsivo. É muito comum ver uma pessoa que gasta muito, que sai e paga as coisas pros amigos, e acaba tendo um gasto desnecessário” – e fora do planejado, diz Lai. Essa impulsividade aparece também nos investimentos e pode levar às escolhas precipitadas, lembra Bertolucci. “Nos investimentos, há muitos casos em que a pessoa deveria analisar antes, mas se você é impulsivo, não tem esse ‘vou pensar melhor’. A pessoa já pensa ‘vou fazer porque é maravilhoso’. E aí acontecem essas maus investimentos”, diz o professor.
  • Desorganização. Pessoas com TDAH podem ter uma tendência ao endividamento devido à desorganização. “A desorganização faz com que ela tenha dificuldade de manter uma rotina de acompanhamento dos gastos, dos cartões, dos extratos. Ou se esquecer de fazer os registros, usar as ferramentas propostas”, diz Lai. O professor Bertolucci conta também ser comum essas pessoas perderem prazos no pagamento de contas. “Tem outra parte na desorganização que leva a gastos desnecessários. Imagine que a pessoa precisava de um novo roteador, mas ela tem um novo roteador, só que no meio da bagunça, não acha e compra outro”, diz.
  • Falta de atenção. A dificuldade de aprendizado vista nas crianças também se manifesta nos adultos com TDAH. “Eu sempre sou muito cuidadosa e muito detalhista, eu quero que realmente todo mundo tenha as informações necessárias. Mas, às vezes, a gente precisa repetir a mesma coisa várias vezes, porque aquela pessoa não vai prestar a mesma atenção que uma pessoa que é neurotípica”, diz Lai.
  • Procrastinação. “Vejo uma dificuldade de pensar no longo prazo, porque a pessoa está muito no presente. É diferente da questão do autismo, que tem uma dificuldade de entender a abstração do conceito. No TDAH, eu vejo que é uma dificuldade de lidar com uma coisa que não vai ter uma recompensa imediata”, conta a planejadora.

Estratégias para lidar com TEA, TDAH e dinheiro

Lai conta algumas estratégias que, segundo seus estudos e experiência, podem ajudar pessoas que têm dificuldades em organizar suas finanças.

Automatizar pagamentos e criar lembretes

Pode parecer simples, mas criar aletas no celular sobre a data de vencimento de contas ou programar o débito automático ajuda a rotina de qualquer um. “Para todo mundo, simplificar é sempre um caminho que eu gosto de tomar. Tornar tudo o mais simples possível, o mais palatável possível”, diz Lai.

Emparelhamento de hábito

É uma técnica em que se adiciona um novo hábito associado a um já estabelecido. “Qual é o hábito que já existe? Eu já escovo os dentes todos os dias de manhã. Então eu vou emparelhar esse hábito com um novo. A ideia é ser muito específico, começar pequenininho, com coisas muito simples. Não adianta eu falar que vou, depois de escovar os meus dentes, preencher uma planilha de Excel. Mas posso olhar o saldo bancário, vai ser uma coisa mais rápida. Já é um contato que eu vou ter com a minha vida financeira”, explica a planejadora.

Gamificação

“Na consultoria, a gente atribui pontos e vai avançando dentro do processo do encorajamento financeiro”, diz Lai. A ideia é inserir tarefas gradualmente na rotina, rumo a uma organização das finanças. “A cada etapa, a gente institui recompensas que são mais explícitas, como ‘você conseguiu economizar tantos reais e, por conta disso, você vai pegar uma parte desse valor que você economizou e vai dar uma recompensa para você mesmo’”, explica ela.

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