Entrevistas

Empreendedorismo feminino: ainda falta acesso a capital para mulheres, diz Ana Fontes

Fundadora do Rede Mulher Empreendedora fala sobre os avanços e obstáculos que ainda existem para mulheres nos investimentos

No dia 19 de novembro, é celebrado o Dia do Empreendedorismo Feminino. A data, reconhecida pela ONU em 2014, faz parte do calendário de mais de 150 países. Com o objetivo de trazer mais dados à discussão de como promover a igualdade de gênero, a Rede Mulher Empreendedora lançou neste mês mais uma edição de seu estudo Empreendedoras e seus Negócios.

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Segundo o levantamento, as empreendedoras entrevistadas são predominantemente negras, da região sudeste, de 30 a 45 anos, de baixa renda. Além disso, 70% delas têm filhos, e a maioria (55%) iniciou seu negócio pela necessidade. Mais da metade não tem CNPJ. Só 10% faturam o suficiente para pagar as despesas básicas pessoais e do negócio e ainda sobra dinheiro para investir. Esses números começam a mostrar as dificuldades enfrentadas pelas empreendedoras.

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Para entender melhor o cenário, os avanços e obstáculos que as mulheres enfrentam, o Bora Investir conversou com Ana Fontes, fundadora da Rede Mulher Empreendedora. Ana também falou sobre as medidas que poderiam contribuir com o desenvolvimento das mulheres nas finanças e nos negócios. Confira:

Bora Investir: Faz mais de dez anos que você criou a Rede Mulher Empreendedora. O que você viu de mudança nesse período?

Ana Fontes: Eu criei a Rede em 2010 e acho sim que houve mudanças. Primeiro, treze anos atrás, não se falava de empreendedorismo feminino. As pessoas falavam muito que o empreendedor era igual para homens e mulheres. A segunda grande mudança é que a gente conseguiu trazer dados, estatísticas, trazer pesquisas e dar visibilidade às histórias de mulheres empreendedoras.

Também era muito comum eu ouvir de mulheres empreendedoras que fazer networking que não estava no dia a dia. Tanto que uma das primeiras coisas que a gente promoveu na Rede Mulher Empreendedora foram os encontros para que as mulheres conseguissem se conectar umas com as outras, e hoje há vários eventos com esse objetivo de conectá-las. Por fim, hoje a gente consegue saber quais são os desafios que as mulheres enfrentam para empreender. Isso ajuda bastante, não só nas iniciativas da própria rede, mas no desenho de políticas públicas.

A pesquisa mostra que, entre as mulheres que já tiveram de fechar um negócio antes, o maior motivo foi financeiro, seja pela falta de acesso a crédito, dificuldade em arcar com os custos ou a dificuldade de não ter uma renda mensal fixa. Como podemos mudar essa situação e apoiar melhor essas mulheres?

Empreender para a mulher ainda é muito sofrido. Ainda tem muitas questões envolvidas. Eu coloco o crédito dentro de um aspecto mais amplo, que é o acesso a capital. Essa é uma ferramenta que ainda não chega às mulheres. Só 19% das mulheres já pediram algum crédito, e dessas, 58% tiveram a aprovação total do que pediram. Mas pra mim o que chama atenção é o fato delas nem pedirem. Significa que ainda existem muitas restrições em relação ao sistema financeiro em torno delas. Não só as restrições culturais, mas também as restrições que são estruturais.

Criar políticas de acesso a capital, como por exemplo recurso carimbado para pequenos negócios liderados por mulheres, seria uma política bem importante para mudar esse jogo.

Outra coisa que me chamou a atenção é que entre as mulheres que não têm CNPJ, o maior motivo que elas citam é a falta de dinheiro para arcar com os custos. Mas olhando do outro lado, como a formalização as ajudaria nos negócios e a conseguir acesso ao capital?

Esse é um dado super importante. Para formalizar um negócio hoje existe o MEI, em que se paga R$ 56 por mês. Veja que essas mulheres estão dizendo que não têm R$ 56 por mês para pagar a formalização do MEI. É uma informação importante e que deve ser olhada com uma visão de mudar de política. O governo federal poderia pensar numa alternativa para que essas mulheres tivessem essa formalização, por exemplo, sem ter que pagar esse valor mensal.

E a formalização é fundamental, não só para o negócio mas para a mulher enquanto ser humano. Se ela fica grávida ela, teria direito à licença maternidade como MEI. Há outros direitos, como licença médica. São questões relacionadas à segurança, que ela teria se tivesse formalização.

Só 10% das mulheres que responderam a pesquisa conseguem investir além e manter os negócios e pagar as contas básicas. Isso é muito diferente entre os homens ou entre mulheres que não são empreendedoras, mas que estão empregadas de alguma forma?

Um dos dados mais chocantes que a gente viu da pesquisa foi que só 10% das mulheres conseguem sustentar o negócio, as despesas pessoais, e sobrar alguma coisa para que ela consiga investir, como fazer reserva ou fazer outras coisas. Em relação aos homens, o cenário sim é diferente. Mas temos de olhar com muito cuidado, porque não significa que a mulher desempenha menos, mas na verdade ela tem outras questões relacionadas ao à economia do cuidado que faz com que ela não consiga dedicar o mesmo tempo que o homem dedica ao negócio.

Precisamos falar sobre isso porque é preciso oferecer apoio e condições para essas mulheres que estão empreendendo. Oferecer por exemplo uma creche para mães de filhos pequenos, para que ela consiga dedicar mais tempo ao negócio.

Outro ponto da pesquisa é que 73% das mulheres têm dívidas e algumas delas já com contas em atraso. Como ajudar as mulheres a apoiar os negócios delas e no planejamento financeiro?

Primeiro, em relação ao acesso ao capital, a gente poderia ter linhas de crédito para elas, isso eu acho fundamental. De forma mais ampla, estamos falando de acesso ao microcrédito, crédito, investimento anjo, a fundos de investimento e linhas de desenvolvimento e inovação.

O segundo ponto que eu acho importante é que a gente poderia ter políticas afirmativas de compras, como por exemplo, criar mecanismos para que compras do estado priorizassem pequenos negócios liderados por mulheres. Em alguns países, isso já existe. É uma política relativamente simples de fazer e que pode ser implementada de uma forma mais rápida.

O terceiro ponto é a questão da educação, educar pra empreender. Nós fazemos isso no RME e existem muitas iniciativas que também fazem, mas eu acredito em um grande programa estruturado, que tivesse a colaboração do poder público e da iniciativa privada, junto com organizações sociais

E um outro ponto extremamente importante, aí uma política pública mesmo, é resolver a questão de rede de apoio. O Brasil tem 2,5 milhões de déficit de vagas em creches, que afeta muito e fortemente as mães e filhos pequenos, que são a maioria no empreendedorismo. Por fim, é facilitar o acesso dessas mulheres a ambientes de inovação.

Como as mulheres lidam diferente com o dinheiro e com as finanças?

Tem uma questão histórica, que o território financeiro sempre foi um território masculino, sempre quem falou de dinheiro foram os homens. Isso traz vieses inconscientes muito pesados. Há poucos anos vemos mulheres como influenciadoras financeiras. Então, a primeira questão é mostrar para as mulheres que o território do dinheiro pertence a elas também.

O segundo ponto é simplificar esse universo do mercado financeiro. É preciso ter uma linguagem mais inclusiva e mais conectada com os pequenos negócios liderados por mulheres.

Um terceiro ponto que eu acho que é muito importante também é o tipo de negócio. 70% dos negócios liderados por mulheres são nas áreas de que a gente chama de área de domínio da mulher, como estética, beleza, alimentação fora de casa e serviços. E normalmente o mercado financeiro está muito mais habituado a dar dinheiro para outros tipos de negócio.

Falando ainda do sistema financeiro, a metodologia de concessão de crédito eu acho que é a mesma há 40 anos. E não leva em consideração o gênero. As mulheres são historicamente melhor pagadoras, mas não temos condição de crédito diferenciada por isso.

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