Entrevistas

“Possibilidade de corte agressivo de juros no Brasil está em xeque”, diz André Muller

"Se em algum momento do ano imaginava-se que o Fed seria o primeiro a cortar os juros, agora a situação é completamente distinta", diz estrategista-chefe da AZ Quest

A quarta-feira, 10 de abril, era de longe o dia mais esperado da semana para o mercado. O dia de divulgação do índice de preços ao consumidor (CPI), nos EUA e do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), no Brasil, era chave para calibrar as expectativas quanto à trajetória de juros nos dois países.

Os dois trouxeram surpresas, cada um para um lado. Nos Estados Unidos, o CPI avançou 0,4% em março ante fevereiro, acima dos 0,3% projetados. O núcleo do indicador, que exclui os voláteis preços de alimentos e energia, avançou 0,4% na comparação mensal, também acima do consenso do mercado, de 0,3%.

Já no Brasil, a inflação medida pelo IPCA apresentou alta de 0,16%, quase no piso do intervalo das estimativas dos analistas.

O Bora Investir conversou com André Muller, estrategista-chefe da AZ Quest, para detalhar o pano de fundo que se desenha com os novos números e quais os desafios para as duas economias a partir de agora. “A possibilidade maior agora é que a gente volte a viver um ambiente mais caracterizado do que um dólar forte. Até porque, se for olhar para outras economias relevantes, os dados mais recentes não estão mostrando um crescimento tão forte, nem uma inflação tão preocupante”, afirma. Assim, outros bancos centrais, como o BCE, podem ver espaço para cortar juros antes do Fed.

Atualmente, a estratégia multimercado macro da AZ Quest tem se posicionado com uma expectativa de que a Selic caia abaixo do que o mercado espera. “Hoje, o mercado precifica mais 80 pontos de corte, para entre 10% e 9,75%. Esse novo número [do IPCA] nos dá conforto de que o BC teria espaço para seguir cortando, mesmo de forma mais lenta, ao longo do tempo”, diz. Tem também posições compradas em bolsa no Brasil, que parece “descontada”, e em dólar, especialmente contra o euro. 

Confira a entrevista completa:

Bora Investir: A inflação nos Estados Unidos medida pelo CPI veio acima do que o mercado esperava, com núcleo acima do esperado também. Como você avaliou esse número e como isso pode afetar a decisão do Fed sobre o início de um corte de juros?

André Muller: O CPI veio definitivamente mais alto do que esperado. A expectativa do mercado era um core [núcleo] com avanço de 0,30%, eventualmente até com risco de baixa, porque houve uma discussão entre janeiro e fevereiro de que a inflação mais alta nesse período tinha algumas distorções derivadas de fatores sazonais, que poderiam ficar para trás. Eu diria que antes do número, a expectativa era de que a maior chance era até de uma surpresa para baixo. Tanto que nos últimos dois dias, o mercado teve uma performance mais favorável para ativos de risco, com alguma queda de juros lá fora, as moedas se apreciando contra o dólar.

Mas o número veio 0,07 ponto porcentual mais alto do que o esperado, o que para uma meta de inflação ao redor de 2%, é uma surpresa relevante. E a composição dessa surpresa foi importante no sentido de que os preços de bens seguiram surpreendendo para baixo. A inflação relacionada a housing, aos gastos com moradia, veio em linha com o esperado. E a aceleração da inflação veio nos serviços.

Apesar de esse ser um componente com peso menor, é um número que tem sido muito destacado ao longo desse ciclo de inflação mais alta porque o Fed tinha confiança que o preço de bens iria cair, pela recomposição das cadeias globais da indústria. Para os preços de housing também havia uma convicção maior de que haveria uma desaceleração deles por conta de indicadores antecedentes de aluguéis, que também mostravam essa queda. Então lá em meados do ano passado o Powell destacou que o Fed estava olhando com muita relevância para esse núcleo de serviços, que é onde tem mais incerteza.

Na época, houve uma desinflação mais rápida, tanto de bens, tanto nesse núcleo de serviços. Isso levou o mercado a precificar muitos cortes.

Ao longo desse ano até aqui, o que aconteceu? Janeiro e fevereiro, uma inflação mais alta, com dados econômicos também numa toada mais forte, assim, sinalizando um crescimento nesse trimestre de 2,5%, uma taxa de desemprego bastante baixa, um número de pessoas contratadas muito alto, como o payroll da semana passada mostrou. E aí, diante de todo esse cenário, você tem visto a recuperação dessa inflação de serviços o que torna o contexto mais preocupante.

Em termos trimestrais, se você tornar isso uma taxa equivalente ao ano, essa inflação de núcleo de serviços estaria rodando a 8%. Em meados do ano passado, ela chegou a rodar em torno de 2%, que foi quando o Fed começou a ficar um pouco mais tranquilo.

Então, o número de hoje foi bem fora das expectativas e no ponto mais crucial, que é essa inflação dos serviços.

Bora Investir: E quais devem ser os próximos passos do Fed?

André Muller: Vai depender, como sempre, do avanço dos dados nos próximos meses, mas eu diria que o comportamento dos dados até aqui é consistente cada vez mais com os membros do Comitê sinalizando que eles não têm clareza de quando será possível iniciar um ciclo de corte de juros.

A atividade segue muito forte e a inflação que tinha dado sinais melhores passou a dar sinais piores num momento crucial.

Junto a isso, tem havido um processo de aumento da expectativa de inflação mais longa lá, o que normalmente é vinculado a um banco central visto como mais leniente com a inflação. Também é bem provável que ao longo do tempo os membros do comitê se coloquem em oposição a isso, e a maneira que eles têm de fazer isso é emitir, seja nos discursos, seja na própria condução da política monetária, uma visão mais conservadora.

Bora Investir: Nas últimas semanas, muito tem sido falado sobre o Fed preferir o PCE como medida de inflação, em vez do CPI. Qual a diferença entre os dois e por que essa diferença de peso dada pelo Fed?

André Muller: A grande diferença é a ponderação dos vários subitens de inflação entre um e outro. O PCE tem um peso bem menor da inflação da parte de moradia. Tem também o fato de que a cesta do PCE se ajusta melhor à dinâmica de troca de bens e serviços consumidos em função do preço. Então, a ponderação também reflete as mudanças no comportamento de quanto as pessoas estão comprando de cada produto.

Então, em tese, o PCE é um número que expressa melhor a realidade da inflação que está sendo encontrada pela sociedade, pelo consumidor. Então tem essa preferência que já vem de bastante tempo. Num ambiente de inflação muito alta, como foi lá o choque de 2022, por exemplo, é meio indistinto olhar para um ou para outro. O próprio Fed foi ao longo do tempo sinalizando isso. A partir do momento do ano passado que a inflação foi se aproximando de níveis menos distantes da meta, ele voltou a dar mais peso para o PCE. Esse número de hoje traz inputs para o PCE, que deve ser divulgado em umas três semanas.

Bora Investir: Desde que o Fed ainda começou a subir os juros, há uma discussão de como que a atividade da economia americana vai refletir esse aperto monetário. Qual o cenário que você vê como mais provável para a economia dos EUA?

André Muller: A gente tem um cenário em que essas taxas de crescimento acima do que seria o potencial de longo prazo da economia americana persistem ao longo do ano, algo em torno de 2,5%. E uma inflação que vai ficar entre 2,5% e 3% nesse ano. Então, é um cenário que está acima tanto na inflação quanto no PIB do que os membros do Fed indicaram na última projeção deles, mas não está tão distante.

Mas à medida que o tempo vai passando e a atividade não vai dando sinais de uma desaceleração mais expressiva e, acima de tudo, esse movimento global, de aumento das commodities e, como eu falei, da inflação implícita, que sinaliza que o mercado não acredita que o FED vai ser capaz ou vai ter a condução da Polícia Monetária adequada para alcançar a meta deve fazer naturalmente com que o discurso dele se torne mais hawkish ao longo das próximas semanas até a gente ter dados que possam sinalizar uma moderação seja no ritmo de atividade, seja da própria inflação. Então, um cenário que não comporta muita desaceleração da atividade, porque de fato, se olhar para o consumo, a capacidade de consumo da família segue bastante alta e isso tem se traduzido em números de crescimento mais robustos do que se esperava dois meses atrás, por exemplo.

Bora Investir: Como falamos, os números de hoje surpreenderam e fizeram o mercado alterar as precificações para o corte de juros, com o primeiro corte só em setembro. Qual que é o impacto disso para o dólar?

André Muller: A possibilidade maior agora é que a gente volte a viver um ambiente mais caracterizado do que um dólar forte. Até porque se for olhar para outras economias relevantes, os dados mais recentes não estão mostrando um crescimento tão forte, já não estão mostrando também uma inflação tão preocupante.

Então, acho que pode voltar a ter um ambiente em que os Estados Unidos, o Fed, vai se ver em meio à necessidade de voltar a uma posição mais clara de combater a inflação, enquanto outras economias vão ter condições de aliviar o nível de restrição monetária atual, como por exemplo o próprio Banco Central Europeu ou mesmo aqui no Brasil, onde já vem acontecendo.

Então vai ter essa divergência de política monetária, provavelmente. Se em algum momento do ano se achava que o Fed seria o primeiro [dos países desenvolvidos] a cortar os juros, agora a situação é completamente distinta.

Bora Investir: Falando agora do Brasil, o nosso IPCA veio no piso das estimativas. Isso pode afetar ou influenciar os próximos passos do Copom? Na última ata, Comitê já mudou um pouco o discurso, deixou a possibilidade de mudar o ritmo de queda. Nossa inflação surpreende para baixo, mas por outro lado, temos um cenário com os EUA postergando esse afrouxamento. Como fica o cenário agora?

André Muller: O próprio Roberto Campos [Neto, presidente do BC], entre os outros membros do Copom, tem dado um peso maior ao que tem acontecido nos Estados Unidos, mostrando o quão desafiador pode se tornar o ambiente global para uma economia como a nossa, que tem um endividamento alto e trabalha com juros altos, num ambiente global em que a oferta de liquidez pode mudar rapidamente em função do que acontece nos Estados Unidos.

Nos últimos 40 dias, entramos numa janela em que novamente passou-se a colocar em xeque essa possibilidade de cortes agressivos de juros aqui no Brasil. E menos em função do que está acontecendo internamente, com inflação, mas mais por essa condição externa de menor oferta de liquidez.

Quando o Brasil você saiu dos níveis de 13,75% da Selic, dar essa orientação de que o ritmo de queda continuaria em 50 p.p. para as próximas reuniões fazia sentido, porque realmente estava num nível bastante restritivo. Agora a gente já não está mais num nível tão restritivo.

Os dados de atividade aqui também começaram o ano surpreendendo para cima, e os riscos para a inflação hoje no Brasil, apesar de ela estar em 3,7%, já não são mais para baixo, como era no começo do ano. São inflações baixas historicamente aqui no Brasil, mas não permitem também um grande afrouxamento monetário. E agora, mais esse elemento externo que preocupa. O IPCA de hoje dá mais tranquilidade de que aqui a coisa está sendo feita de uma maneira correta.

A inflação não está fora de controle, muito pelo contrário.  A parte de serviços que surpreendeu para cima em alguns números passados hoje teve um comportamento diferente. Então, acho que o Brasil segue bem posicionado para surfar esse ambiente global nos próximos meses, mas um dos fatores que permite essa segurança é justamente o Banco Central mais conservador.

É difícil dizer hoje quando eles vão parar, mas claramente tem algum valor em desacelerar o ritmo de corte em algum momento nessas duas próximas reuniões para até ganhar mais tempo, ver como é que o desenrolar tanto da atividade e de inflação aqui quanto lá fora.

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