Dia da Mulher Negra: elas contam suas trajetórias no mundo das finanças
No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, contamos a trajetória de mulheres que resolveram sua vida financeira e, hoje, ajudam outras pessoas a trilharem o mesmo caminho
Por Marília Almeida
As mulheres ficam atrás dos homens em números de investidores, patrimônio investido e também no valor médio dos salários recebidos, o que faz com que o caminho da educação financeira, para elas, seja mais desafiador. Mas há um grupo entre as mulheres que encara ainda mais barreiras para trilhar essa jornada: o das mulheres negras.
Elas representam 28% da população brasileira, mas ainda estão na base da pirâmide e recebem, em média, salários 57% menores do que o de homens brancos. Essa situação frágil se potencializa para 41,1% delas, que são chefes de família. O grupo também é o que mais empreende por necessidade no país, segundo a economista Dirlene Silva.
Nesta terça-feira, 25 de julho, data em que é comemorado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha, o Bora Investir conta a trajetória de mulheres negras que resolveram sua vida financeira e, hoje, ajudam outras pessoas a trilharem o mesmo caminho.
Michele Alves
Na família de classe média de Michele Alves nunca faltou comida na mesa, mas seus pais sempre trabalharam muito para que as duas filhas estudassem em boas escolas particulares. “Sou fora da curva. A maioria das mulheres negras não têm oportunidade de estudar e ter uma boa educação”. O pai de Alves era empresário até falir e abrir uma banca na feira com o auxílio de seu tio. “Entendi desde cedo que não importa o trabalho: o mais importante é ter dignidade, pagar contas e ter comida na mesa”.
Os pais de Alves não tinha educação financeira, muito menos investimentos. E um dia Alves ficou com o nome sujo no Serasa. “Temos uma cultura na comunidade negra, que vem da época da escravidão, quando não tínhamos nada, apenas uns aos outros, de sempre nos ajudarmos. Se o outro não tá bem, vamos dividir. Mas não aprendemos que precisamos subir de nível para ajudar. Senão, você se prejudica. Comecei a entender que isso estava errado. Então, resolvi fazer primeiro o meu planejamento para depois ajudar os outros”.
Apesar de ter feito uma faculdade de educação física, foi na gestão do negócio de uma gravadora que Alves se encontrou. Depois, resolveu empreender e criou a Ubunttu Gestão Financeira, que tem como foco profissionais do setor criativo, ligado a artes e publicidade. “Deixei um emprego com carteira assinada e consegui evoluir mesmo assim. Precisei da validação de uma amiga branca, que foi a primeira a contratar o meu serviço, para acreditar que eu podia”.
Alves acredita salvar vidas ao gerenciar financeiramente negócios e orçamentos familiares. “Já atingi ótimos resultados: atendi clientes que foram do zero a R$ 1 milhão e saiu na Forbes com a minha ajuda. Oriento com um ponto de vista maternal: a mulher já tem esse instinto, mas a mulher negra talvez tenha mais, pela cobrança da sociedade e lutas. Vejo clientes não como números, mas soluções”.
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Atualmente, Alves é divorciada e mora em um apartamento de bairro nobre com suas filha. “As pessoas questionam como uma mulher preta pode morar assim?”. Seu objetivo é ter independência financeira para que não precise depender de sua filha na velhice. “Eu olhei pela minha mãe, que olhou pela minha avó. Meu desejo é que a minha filha não tenha de olhar por mim, porque sei como isso pode travar a vida dela. Hoje ela diz que deseja ser empresária porque sabe que eu sou”.
Para ela, educação financeira não deve tratar apenas de investimento. “Antes de investir, as pessoas precisam ter o mínimo garantido, como saúde, moradia e alimentação. Portanto, é necessário fazer escolhas, com planejamento e organização. Muita gente quer TV de tela plana e iPhone e depende do SUS. Será que não é necessário rever prioridades?”. Além de investimentos, o foco, na visão de Alves, deve ser aumentar a renda ao longo da vida, completa Alves. “Educação também é investimento, pois irá proporcionar uma remuneração melhor no futuro. É necessário gerar mais renda, mas não só vendendo brigadeiros, e sim se capacitando profissionalmente”.
Para Alves, nesta data é necessário verbalizar que a mulher negra é capaz de tudo. “Isso vale para todos os seres humanos, mas para elas é necessário repetir e bater na tecla. Um empresário rico me disse que viu mulheres em Paraisópolis ganhando R$ 3 mil dizerem que não queriam mais, estava bom. Porque foi ensinado para elas que elas conseguiriam ganhar um salário mínimo. Se passassem disso, já seria muito. Mas não existem barreiras. Quanto mais ganharem, mais irão fortalecer a família e a comunidade. Se uma delas se limita, limita todas ao seu redor. Bora conquistar mais!”.
Vânia Santana
Vânia Santana nasceu em uma família de imigrantes nordestinos com cinco filhos e sem nenhum patrimônio. O dinheiro era pouco, contado e difícil de ser obtido. Não havia, portanto, o hábito de poupar e nem construir renda, e sua mãe fazia milagre com o orçamento doméstico para não faltar comida e roupa para todos. “Quando minha mãe rompeu um casamento de 25 anos, tinha apenas a 4ª série primária e nunca havia trabalhado fora. Então resolveu vender salgados na porta de uma construção e começou a vender tricôs para alimentar seus dois filhos menores, eu e meu irmão”.
Até que chegou um momento em que Vânia ficou desempregada por muito tempo e fazia bicos. “Cheguei a ficar 100% tomada no cheque especial e não via meu salário. Precisava parar”. Perto de ficar inadimplente, algo que seu pai sempre ensinou a evitar, resolveu, usar todos os seus talentos, assim como fez sua mãe no passado. Além de vender seu carro, virou síndica do prédio, tarefa que detestava; e deu aulas mesmo sem experiência anterior. “Algumas habilidades eu nem sabia que tinha. Tive de cortar muitos gastos e até mudar comportamentos, como deixar de ter cabelo alisado e passar a cortá-lo no estilo black para economizar”.
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Como resultado, em dois anos Santana sanou todas as dívidas e começou a investir. “Prometi a mim mesma não passar por isso novamente”. Santana parcelou a dívida no cheque especial em 12 vezes. No 13º mês, resolveu guardar o dinheiro que seria direcionado para o pagamento de mais uma parcela e foi fazendo isso com todas as outras dívidas. “Cada uma delas virou um investimento”.
Vânia começou a aprender sobre educação financeira intuitivamente, pois há 20 anos o conhecimento não era acessível para a classe C, conta. “Comecei a guardar dinheiro e esse hábito foi mudando não apenas o meu patrimônio, mas aumentando a minha segurança e autoestima. Fui construindo e realizando coisas que eu nem sonhava, como a minha primeira viagem internacional aos 48 anos”.
Observando a sua evolução, seus sobrinhos, netos e amigos, inclusive do trabalho, começaram a pedir conselhos financeiros, até que Santana resolveu, em 2019, começar a atuar como consulta financeira, com foco em mulheres negras de classe média. “Diferente da minha geração, elas não são desinformadas, mas não são educadas financeiramente. Algumas querem se reorganizar, mas outras estão muito endividadas. Adapto a consultoria de acordo com a disponibilidade financeira”.
No Dia da Mulher Negra, Santana acredita que são necessárias mais oportunidades para elas. “A questão não é somente negra. Quanto mais pessoas que não sejam negras se conscientizarem de que se engajar não é ajuda, mas função, a sociedade irá se potencializar e avançar muito rapidamente”.
Para saber ainda mais sobre investimentos e educação financeira, não deixe de visitar o Hub de Educação da B3. Este, sobre Como começar a investir, é ótimo para quem aprender a fazer boas escolhas.