Novo arcabouço fiscal: “o problema do Brasil não é criar regras e sim segui-las”, diz Alexandre Schwartsman
Em entrevista ao Bora Investir, ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central fala sobre a discussão em torno da nova regra fiscal e os entraves para dar sustentabilidade às contas públicas
A equipe econômica liderada pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deve apresentar ainda em março a nova regra de controle das contas públicas do país que vai substituir o teto de gastos.
O principal desafio do governo é criar um arcabouço fiscal para estabilizar a dívida pública, mas sem cortar investimentos e gastos sociais essenciais. Entretanto, o governo parece ter deixado de lado priorizar também reformas que alterem a indexação de gastos à arrecadação de impostos, por exemplo – medida que tem colocado em xeque ajustes fiscais anteriores.
A história do país mostra que há décadas o Estado brasileiro não cabe no seu orçamento. Da mesma forma e proporção diversos mecanismos para dar sustentabilidade as contas públicas foram criados e o Brasil segue com crises de credibilidade diante de gastos públicos desorganizados.
+ Descontrole fiscal é o principal obstáculo para o crescimento da economia brasileira
Em entrevista ao B3 Bora Investir, o economista e ex-diretor de assuntos internacionais do Banco Central, Alexandre Schwartsman, discute os efeitos e entraves econômicos e políticos de uma nova regra fiscal e os desafios para dar credibilidade e sustentabilidade as contas públicas brasileiras.
Acompanhe os principais trechos da entrevista:
Bora Investir: Por que é tão importante um país ter regras fiscais claras, objetivas e cumpri-las na sua integralidade?
Schwartsman: A ideia de uma regra fiscal é sinalizar que a trajetória do endividamento não vai ser explosiva. Todo o governo tem uma certa dívida e normalmente a gente a mede com relação à capacidade arrecadatória – que está ligada ao Produto Interno Bruto, ou seja como evolui a dívida relativamente ao PIB.
A ideia sempre é que, embora não haja um limite físico, se essa relação passar de 75% ou 80% tudo descamba. Mas o fato é que mesmo sem existir um limite físico, a ideia é que o endividamento do país não possa crescer sem limite – porque em algum momento isso vai ameaçar a própria capacidade de pagamento do governo e você vai ter alguma forma de calote. Seja o calote explícito, ou renegociado, ou reestruturado, ou um calote disfarçado por meio de inflação.
Então para ter estabilidade macroeconômica e inflação baixa, você precisa de um regime fiscal que leve a uma trajetória de endividamento que não seja percebida como explosiva. E são exatamente as regras fiscais que colocam limites para a evolução de gastos – ou do resultado do governo – de tal forma que implique uma trajetória estável para o endividamento.
Bora: O problema do Estado brasileiro não caber no seu orçamento vem de longe. Durante a nossa história diversos mecanismos para dar sustentabilidade as contas públicas foram criados. Cito alguns: lei de Responsabilidade Fiscal, Regra de Ouro, Metas de Superávit e o Teto de Gastos – que agora será substituído. Por que ainda enfrentamos crises nas contas públicas?
Schwartsman: Porque a solução não está em criar mais uma lei que vá determinar como será a evolução do gasto. Recentemente, como você chamou atenção, colocaram a regra do Teto de Gastos. Ela dizia que o gasto público não pode subir além da inflação por um período de dez anos – se for o caso, renovável por outros dez. Essa era uma regra muito simples, mas o fato de colocá-la não significa que você revoga todas as demais que atuam no sentido contrário.
Então a gente tem um conjunto de regras para a evolução do gasto previdenciário, da folha de pagamentos, a indexação de certos gastos com a receita tributária, regras que determinam indexação de salário mínimo, que por sua vez afeta a previdência. São um conjunto de regras que atuam para expandir os gastos, ou seja, no sentido contrário. Portanto essas regras são contraditórias e em algum momento as duas coisas colidem.
E o que tem sido feito ao longo dessa jornada? Toda vez que essas coisas colidem, a gente abandona ou muda a regra que deveria estabelecer um controle geral de gasto. É por isso que a Regra de Ouro não durou. A Lei de Responsabilidade está sendo violada há uns dez anos. Por esse motivo que as metas de superávit primário não funcionaram. É por esse motivo também que o Teto de Gastos não funcionou.
Não adianta você dizer não pode e ao mesmo tempo manter todo um conjunto de regras que obrigam o gasto a crescer. Uma das duas coisas tem que ceder. No entanto, historicamente no Brasil, o que se cede é a regra geral que determina o superávit ou a Regra de Ouro ou o Teto de Gastos. Normalmente, essas saem e as demais continuam.
Portanto é preciso mudar as regras que determinam a evolução do gasto público com um conjunto de reformas para que eles não cresçam mais além do PIB.
Bora: O novo governo pretende apresentar ainda neste mês um novo arcabouço fiscal, em substituição ao Teto de Gastos. Você acredita que essa nova regra pode solucionar as questões que você comentou anteriormente?
Schwartsman: O problema não é criar uma regra fiscal e sim garantir que ela funcione e indique, ao longo do tempo, uma trajetória de gastos e resultados do governo que impliquem em uma dívida não explosiva ao longo de um horizonte relevante. Você pode colocar a regra que quiser, mas se não mudar as demais que atuam no sentido contrário, não vai funcionar. Porque só colocar e não mexer em nada vai dar problema.
São basicamente dois casos. O primeiro: coloca-se uma regra fiscal e não mexe nas demais ou coloca uma extraordinariamente frouxa que nunca vai ser violada. Só que a trajetória de endividamento não será contida e isso será inútil. Segundo: se você incluir uma regra fiscal que em algum momento vai colidir com as demais, isso pode implicar no crescimento contínuo do gasto público. E aí vai acontecer a mesma coisa que todas as regras anteriores: um arcabouço com persistente aumento do gastos e que será preciso ser jogado fora e colocado outro no lugar.
Bora: O jornal ‘O Globo’ trouxe a informação no fim de semana que a nova âncora fiscal deve ser anticíclica, ou seja, durante períodos de aceleração econômica, os gastos não crescem na proporção das receitas. Em fases de baixa, porém, não haveria corte de investimentos públicos. Você poderia explicar como se daria isso? E qual é a sua opinião?
Schwartsman: Você teria um papel – em condições ideais – no sentido de a política fiscal estabilizar a economia. No entanto, não é uma regra bacana porque você não corta o gasto quando está tendo uma recessão e não aumenta – ou até reduz um pouco – em um momento em que você tem uma expansão econômica e isso acaba colaborando no sentido de moderar o ciclo econômico. Em teoria, esse negócio funciona às mil maravilhas, mas estamos falando de um país chamado Brasil.
A gente via, por exemplo, um governo que dizia fazer uma política fiscal anticíclica que foi o governo Lula em 2010, por exemplo. A economia estava se recuperando da crise de 2009, estava crescendo e o gasto avançava barbaramente. O ministro da Fazenda jurava de pé junto que estava executando uma política anticíclica. Não! Era pró-cíclica.
Agora a pergunta é: como é que esse negócio vai funcionar [regra fiscal] na prática, quando você tem outras regras que estão atuando no sentido oposto? Fica complicado falar que não quer que o gasto cresça no período que a economia está crescendo muito, mas tem as regras que dizem o contrário.
Você tem um conjunto de gastos que são indexados à arrecadação de impostos, ou seja, quando a arrecadação do país cresce essas despesas também avançam. Por exemplo, ‘X’ por cento de imposto de renda tem que ser transferido para estados e municípios. ‘Y’ por cento tem que ser gasto em saúde, educação. Você vai aumentar esse gasto, independentemente de ter uma regra. Não existe uma norma que diz que não pode, porque tem uma outra regra que diz que você tem que fazer isso.
O salário mínimo, por exemplo, que determina o gasto previdenciário que está sendo reajustado pela inflação do ano anterior, contra um aumento de preços muito mais baixo nesse ano. Isso vai ter expansão do gasto público, independentemente da regra fiscal.
O problema do Brasil não é criar regras e sim seguir com elas. Vamos pegar aqui o Teto de Gastos. Em 2020, ele foi respeitado apesar dos gastos com a pandemia, pois tinha uma previsão que, no caso de uma calamidade, você não seguisse com a regra. Isso não é um problema. Mas chegou no fim de 2021 e o governo queria gastar mais no ano seguinte para ganhar a eleição. O que fez? Instauramos os precatórios [dívidas na União com pessoas físicas, jurídicas, estados e municípios que precisam ser pagas] porque você para de pagá-los e vira uma forma de você burlar o teto de gastos e gastar mais.
Em meados no ano passado estava difícil de ganhar a eleição, dão uma forçada no Auxílio Brasil. Então você vai lá e muda a regra constitucional de novo, porque tem um interesse do governo de plantão em gastar mais. No Brasil se muda a Constituição mais fácil do que estatuto de condomínio. Então, pode ser uma regra super sofisticada, ela não sobrevive. A primeira necessidade que o governo tenha de gastar mais, por qualquer motivo, em geral relacionado ao ciclo político.
Reforçando o que falamos até aqui: a gente já teve Lei de Responsabilidade, meta de superávit, Regra de Ouro, Teto de Gastos, acordo de renegociação de dívidas com Estados e Municípios. Nada disso sobreviveu a necessidade política de um governo que precisar gastar.
Bora: A equipe econômica acelerou a finalização da proposta de nova regra de controle das contas públicas para dar um sinal consistente para a próxima reunião do Comitê de Política Monetária do Banco Central. Se essa nova regra for apresentada antes do Copom, você acredita que há espaço para cortar juros?
Schwartsman: Essa questão da regra fiscal também virou um instrumento de pressão política sobre o Copom. É preciso entender que o problema não é a regra fiscal. Neste ano temos o maior impulso fiscal da história brasileira [Pec da Transição para pagar o Bolsa Família], excetuado 2020. A variação do resultado do governo federal vai sair de um superávit de 0,5 ponto percentual do PIB para um déficit de 1,5 ponto percentual.
Então se o governo realmente quer mudar, ele precisa apresentar um conjunto de reformas que vão, de fato, trazer uma trajetória de endividamento consistente. Esse tipo de ação, obviamente, mudaria a minha percepção sobre a evolução de gasto público no Brasil.
Agora, dizer que tem uma regra nova – que vai ser, por definição, mais frouxa que o Teto de Gastos – e dessa vez é diferente, porque eu vou seguir – conta outra história, porque essa não dá para acreditar.
Bora: Aproveito a sua fala sobre reformas para fazer a última pergunta. Em meio as discussões do novo arcabouço fiscal, temos a Reforma Tributária batendo na porta. Qual a sua percepção sobre ela? Acha que sai ainda este ano?
Schwartsman: Eu estou otimista com a possibilidade de aprovação da reforma tributária. É um tema que parece que amadureceu, tem um bom projeto que já está sendo discutido. Além disso trouxeram a pessoa certa para comandar essa discussão que é o Bernard Appy [secretário especial de Reforma Tributária do governo federal].
Agora, não dá para pedir da reforma tributária aquilo que ela não pode entregar. Mesmo que se aprove o texto da reforma no Congresso esse ano, a lei complementar – que é necessária para regular – só seria aprovada em 2024. Essa reforma só entraria em vigor, portanto, em 2025.
Agora não é um negócio que você desliga a chavinha do ICMS, IPI, PIS, COFINS, ISS e liga a chavinha do IBS [imposto sobre Bens e Serviços]. Vai ter que fazer uma transição, inclusive para entender como esse novo imposto funciona. A gente teve a experiência da Índia – que foi uma experiência até mais radical do que a brasileira – mas que eles fizeram basicamente desligando uma chave e ligando a outra. Foi um caos completo. Portanto, além de entrar em vigor só em 2025, ela só vai entrar plenamente em vigor alguns anos depois – por baixo de oito a dez anos.
Apesar da reforma, como estamos no Brasil, sempre acredito na possibilidade de a gente aumentar os impostos – exatamente o que foi feito ao longo dos últimos 30 anos. Ela pode ser uma solução, mas historicamente o país aumenta tributos e depois os gastos seguem. A gente aumentou os impostos depois do Plano Real, mas os gastos baixaram. Depois subiram os impostos em 1999, mas os gastos alcançaram. Depois em 2003.
Enfim, se você for aumentar os impostos e não controlar o gasto, em algum momento a coisa volta para o desequilíbrio. Então não é uma solução estável resolver esse problema por força da arrecadação. A história brasileira sugere que isso exatamente não é o problema e sim o controle dos gastos.