Argentina: “país precisa restabelecer a credibilidade”, diz Silvio Campos Neto
Em entrevista ao Bora, economista e sócio da Tendências afirma que novo presidente precisa tornar o país mais produtivo e o Estado menos intervencionista. Sociedade também precisa apoiar ajustes econômicos
O segundo turno das eleições na Argentina acontece no próximo domingo, 19/11. Na disputa está o atual ministro da Economia, Sergio Massa, que venceu o primeiro turno, e Javier Milei, um populista de direita, que tem ideias como dolarizar a economia do país.
A solução para a crise econômica é o foco dos postulantes à Casa Rosada. A Argentina vive há décadas com uma forte desvalorização cambial, inflação acima de 138% ao ano, juros em 133% ao ano e 40% da população na pobreza.
Esse cenário se reflete em rombos constantes nas contas públicas, que faz o governo imprimir dinheiro para se financiar – o que leva a escalada da inflação. A dívida externa elevada, desde os governos ditatoriais, também contribui para a crise e a falta de confiança no país.
Em entrevista ao B3 Bora Investir, o economista e sócio da Tendências Consultoria, Silvio Campos Neto, fez um panorama de como a Argentina chegou nessa situação econômica e social preocupante.
“É necessário mudar esse modelo econômico mais intervencionista vigente há décadas, do qual a população está muito apegada”, explica.
O economista também falou sobre a sua expectativa para as eleições presidenciais. “A situação na Argentina é bastante grave e qualquer um que vencer terá muitas dificuldades para governar”
Para Silvio Campos Neto, o país precisa restabelecer a sua credibilidade e confiança, se tornar mais produtivo, fazer o ajuste fiscal e conscientizar a sociedade de que é preciso mudar o modelo econômico para superar a crise.
“Não estou nem um pouco convencido de que, mesmo que a sociedade escolha por uma mudança nas eleições, vai topar pagar o preço desse período de ajustes que não vai ser curto. Estou falando de vários anos com dificuldades em termos de recessão e de piora no bem-estar econômico”.
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Confira abaixo a entrevista completa com o economista e sócio da Tendências Consultoria, Silvio Campos Neto.
B3 Bora Investir: A economia da Argentina vive hoje com hiperinflação, juros altos, desvalorização da moeda e aumento da pobreza. Todos esses problemas têm relação com a alta dívida externa. Você pode fazer um breve histórico sobre como o país chegou nessa situação?
Silvio Campos Neto: A Argentina, na primeira metade do século passado, era no comparativo global considerado um país rico, com riquezas naturais excelentes, com todo um potencial de crescimento e que tinha um patamar econômico bastante favorável na primeira parte do último século.
Ocorre que desde meados do século passado, a Argentina passou a se abraçar com ideias econômicas que contribuíram gradativamente para um quadro pior. Colocaram na mente das pessoas uma visão de que o Estado, tinha condições, capacidade e até a obrigação de atender determinadas demandas, de fornecer um determinado padrão de vida para as pessoas. Essas demandas crescentes ao longo do tempo foram primeiro minando a capacidade do governo do ponto de vista fiscal. Os governos foram se sucedendo, mas sempre com essa visão que decorreu das ideias do Peronismo, que ficaram muito enraizadas na sociedade desde então.
Isso impôs um custo cada vez maior para os governos, exigindo um aumento de dívida, causando desequilíbrios tanto macroeconômicos como microeconômicos. Esses desequilíbrios, alcançaram também um ápice ao longo dos últimos 20 anos – que foi o período do Kirchnerismo. No entanto teve uma fase inicial boa, em virtude do período do ciclo de commodities, que também favoreceu o Brasil e outros países emergentes. E que deu um belo alívio do ponto de vista não só de contas públicas, mas de contas externas.
A Argentina conseguiu se sobressair nesses primeiros anos de 2000, mas passado o boom de commodities, as despesas ficaram e o país se viu numa situação novamente difícil, com a dívida externa muito elevada, com déficits crescentes e sem capacidade de arrecadação, colocando o Banco Central para emitir dinheiro para financiar esses gastos. Isso desencadeou esse processo inflacionário atual, que já leva a inflação para cima de 100%.
As pessoas acreditam na obrigação do Estado mais paternalista, desse populismo de Estado. Ao mesmo tempo, também toda uma visão negativa do setor privado, aquela ideia de escolher culpados. Desde empresários, de banqueiros, do FMI, de outros países. No fundo, sem olhar para os seus próprios problemas, para suas próprias escolhas. E nisso se criou um ambiente econômico muito ruim, de congelamento de preços, de taxas múltiplas de câmbio, de ‘retenciones’ – que são impostos cobrados sobre exportadores – até mesmo de limitações de exportações.
O resumo da história é que ao longo de décadas a Argentina acreditou muito, talvez excessivamente, na força do Estado como o grande agente indutor do crescimento, o grande fornecedor de bem-estar para a sociedade. E não acreditou, por outro lado, na capacidade da livre iniciativa, do livre mercado, do setor privado produzir e gerar riqueza, de fazer o país crescer.
O resultado, fundamentalmente, são esses desequilíbrios econômicos e inflação persistente, o que leva à desconfiança na moeda.
B3 Bora Investir: Em 2018, a Argentina fez o maior empréstimo de sua história (US$ 57 bilhões), com contrapartida de aumento das suas reservas internacionais, o que não tem acontecido. Por que o país não tem conseguido cumprir essa exigência?
Silvio Campos Neto: Esse aporte, na época, contribuiu para a elevação das reservas. Mas para conseguir ter dólares, o país precisa de uma estrutura produtiva – algo que é construído ao longo de décadas. A Argentina tem um potencial enorme no setor agrícola, em especial na agropecuária. O país também chegou a ter uma indústria forte, mas isso precisa se traduzir em riqueza. Num contexto econômico global, você tem que fazer suas exportações.
No fundo esse é o grande problema deles: ter um ambiente interno e de negócios, que cria incentivos para o setor privado produzir. Quando além de não criar bons incentivos, você dificulta a vida de quem produz e exporta, o resultado é esse: o país fica patinando e não consegue sair dessa situação difícil.
Dando alguns exemplos concretos: ao longo desse período mais recente Kirchnerista, foram várias ações que desestimulam a produção e as exportações de bens nos quais a Argentina tem vantagens comparativas. Seja na questão dos grãos (soja), com as ‘retenciones’, seja no caso das carnes – com medidas arbitrárias para manter a produção no mercado interno, ao invés de estimular que se exporte e aí aumente a produção.
Essas são medidas que geram dólares para o país. Mas quando se impõe restrições, impõe um fardo para o setor privado, ele se defende. Isso acaba levando para um círculo vicioso, que o governo toma medidas fortes e arbitrárias no sentido de tentar manter produtos e dólares no país. O tiro saiu pela culatra, porque no fundo acaba se criando incentivos errados.
As empresas se protegem e acabam até, eventualmente, produzindo menos. As famílias retêm mais dólares como uma medida de segurança. O resultado disso é um país em recessão, com menor oferta e a demanda sendo estimulada pelos programas sociais. Aí a inflação cresce e, ao mesmo tempo, não há dólares porque o setor produtivo é desestimulado. E há uma demanda enorme por dólares, porque as pessoas não confiam no peso.
B3 Bora Investir: O Peso argentino já perdeu mais de 90% de valor em relação ao dólar só neste ano. No mercado paralelo, o valor é quase metade do câmbio oficial. Esse mercado extraoficial reflete a falta de confiança na moeda doméstica?
Silvio Campos Neto: Exatamente. A falta de confiança na moeda aumenta a demanda por divisa estrangeira e dada a escassez, o governo impõe limites na sua política cambial. Então isso gera restrições à compra de dólares pelas taxas oficiais, o que estimula o surgimento do mercado paralelo, que eles chamam de mercado blue.
Notem que tudo tem na origem um ambiente econômico muito ruim, com as medidas negativas ao setor privado e produtivo que eu já citei. Do outro lado, muitos incentivos à demanda via Estado, com subsídios e gastos que exigem aumento de receitas.
É uma sucessão de ações intervencionistas que vem há décadas gerando um acúmulo de distorções, desequilíbrios e problemas econômicos. Além de medidas que tentam corrigir as consequências e não a causa, como os congelamentos de preços que desestimula a produção. O país ao invés de evoluir, empobreceu.
B3 Bora Investir: A hiperinflação é um fenômeno muito conhecido no país. Em 1991, a Argentina conseguiu se livrar dela com um plano de austeridade fiscal. No entanto, dez anos depois até os dias de hoje a crise dos preços voltou ao país. O que deu errado?
Silvio Campos Neto: O desequilíbrio principal que gera a inflação é quando a demanda corre à frente da capacidade de oferta – que vem por duas frentes de produção interna e de importações. E para importar, você precisa de dólares.
Na Argentina, há um desequilíbrio persistente e histórico com a demanda sempre correndo à frente da oferta – até por conta de todo esse aparato estatal de estímulos impulsionando a demanda e sem criar um ambiente propício ao aumento da oferta de bens e serviços.
Ao mesmo tempo esse fenômeno tem sido impulsionado pelo uso do Banco Central como instrumento de financiamento dos déficits. O governo gasta, concede subsídios e estimula o consumo. Não tem receita para bancar isso. O BC roda a maquininha da emissão monetária e isso alimenta ainda mais o dragão inflacionário.
Então tudo volta na origem da questão do modelo econômico escolhido, que não tem favorecido, ao longo das décadas, uma melhora de um ambiente produtivo. Seja em termos de eficiência, produtividade, estímulos à produção. Seja na crença de que basta o governo garantir uma capacidade, um poder de compra das pessoas com seus benefícios, subsídios e gastos, que tudo se resolve. Não resolve porque não há a produção necessária para atender essa demanda. Resultado a inflação sobe.
Em paralelo, o câmbio também é um fator de pressão inflacionária por conta da escassez de dólares e, ao mesmo tempo, o Banco Central tendo que financiar o Tesouro. Isso completa esse quadro não só de pressões persistentes, mas inclusive de aceleração inflacionária, como a gente vê nos últimos anos
Para finalizar, você lembrou daquele período dos anos 90 onde houve um refresco nesse quadro inflacionário. Naquela época, a Argentina partiu para um outro modelo de política econômica interna. Não que tenha abandonado essas crenças que eu mencionei, mas ali tem se a tentativa de impor uma âncora cambial forçada com a institucionalização da paridade, à época um peso a um dólar.
Claro que isso, num primeiro momento, traz sua inflação naturalmente para baixo, ao passar – de certa forma – a acompanhar em parte a inflação norte-americana. Mas tem que ver também se esse modelo é viável a médio e longo prazo, o que ele não se mostrou. Voltou-se a cair no mesmo problema da escassez de dólares e do aumento de gasto em pesos. Então o governo não fez o ajuste devido, os déficits foram crescendo e a paridade não pode ser mantida. Se tem mais pesos circulando na economia, não dá para manter um para um.
Esse modelo explodiu lá em 2001. Gerou o ‘corralito’ [limitação da retirada de dinheiro dos bancos, para evitar a fuga de dólares] – inclusive com a derrubada de presidentes em sequência. Até que a partir da eleição do Néstor Kirchner – ajudado pelo boom de commodities – houve um período de certa acomodação. Mas quando passou o boom, tudo voltou como era antes. E a gente vê hoje todo esse cenário.
B3 Bora Investir: No domingo, os argentinos vão as urnas para um 2º turno histórico. De um lado, o peronista Sérgio Massa (vencedor do 1º turno) que representa o governo atual. Do outro, o ultrarradical Javier Milei, que propõem fechar o BC e dolarizar a economia. Num ambiente econômico ruim e político conturbado, você vê chances de melhora no cenário argentino?
Silvio Campos Neto: Não creio em melhora desse cenário com a vitória de qualquer um dos candidatos. Claro que a gente pode ter implicações a médio e longo prazo distintas. Tudo depende do quanto a sociedade argentina compra a ideia de uma mudança de modelo econômico.
Não estou nem um pouco convencido de que, mesmo que a sociedade escolha por uma mudança nas eleições, ela vai topar pagar o preço desse período de ajustes que não vai ser curto. Estou falando de vários anos com dificuldades em termos de recessão, de piora no bem-estar econômico.
Porque o fato é que o Estado tem que reduzir a sua participação na economia. Isso significa cortes pesados de gastos, subsídios e benefícios. A população argentina não vai aceitar passivamente isso. Porque, de novo, é algo que está muito enraizado nas crenças da sociedade. Só que não dá para pagar essa conta. Então você chega num impasse.
O candidato Javier Milei claramente tem uma cabeça oposta desse modelo econômico populista e voluntarista que prevaleceu ao longo das últimas décadas. Mas se vier com esse tipo de abordagem mais radical de dolarização, de extinguir Banco Central, não vai andar. E eu não creio que ele vá fazer isso, porque não há espaço para esse tipo de ideia. Isso só vai complicar ainda mais a situação.
A dolarização é uma situação muito extrema e para uma economia complexa como a Argentina, um país de grande porte, é algo muito difícil de imaginar funcionando a contento. Vimos isso acontecer recentemente no Equador, que é um país muito menor. Mesmo assim está tendo dificuldades. Portanto é um risco tentar corrigir os problemas com esse tipo de abordagem. O que tem que ser feito? Ele certamente sabe que precisa cortar despesas, só que isso só vai aprofundar mais a recessão e dificilmente a sociedade está disposta a pagar esse preço.
Eu tenho muitas dúvidas em relação ao candidato que representa uma certa continuidade. Ele é do lado peronista, não um dos mais radicais. Eu imagino que o Sérgio Massa entenda também os limites da atuação estatal que gerou todo esse problema. Ele também vai ter muita dificuldade para fazer o ajuste necessário, até porque é o atual ministro da Economia. Então, de certa forma, ele também deu o aval a todos esses subsídios e gastos.
O fato é que qualquer resultado na Argentina terá que passar por um período muito difícil, mais do que já está passando. E aí é que veremos até que ponto a sociedade avaliza alguma mudança de direção para que se tenha uma perspectiva de futuro, ou se vai continuar nesse ambiente de pessoas acreditando que o Estado vai resolver todos os problemas.
A situação na Argentina é bastante grave e qualquer um que vencer terá muitas dificuldades para governar.
B3 Bora Investir: O processo eleitoral argentino é acompanhado com atenção pelo Brasil. Quais efeitos você vê para nós? Poderá haver mais impactos na nossa balança comercial?
Silvio Campos Neto: Quando uma economia entra numa fase recessiva, que é o caso argentino, a capacidade de importar diminui. O país já absorveu cerca de 10% das nossas exportações há uns 10, 15 anos atrás e em 2022 esse percentual foi de 4,6%. Quer dizer, ainda é importante para o Brasil. É o terceiro principal destino das nossas exportações, mas vem cada vez mais perdendo relevância. Pensando numa situação em que o país terá em 2024 uma recessão bastante profunda. Em tese, isso piora mais as perspectivas do ponto de vista de exportações para o país. E não há apenas a relação bilateral, mas a via Mercosul.
É claro que a vitória do candidato governista mantém as coisas como estão. Há uma boa relação entre os grupos que hoje comandam a Argentina e o Brasil, até por uma afinidade ideológica. Então, nesse sentido, é baixo o risco de qualquer tipo de problema. Muito pelo contrário, são governos que tendem a manter uma certa harmonia, melhorando inclusive a interlocução no âmbito do Mercosul.
Agora, no caso da vitória do Millei tudo muda. Inclusive, ele tem mantido um tom agressivo em relação ao governo brasileiro. Caso seja eleito, ele terá que moderar e negociar com todos. Isso é natural. O Brasil é um parceiro fundamental para a Argentina, mas as relações podem ser muito mais conturbadas.
Na questão do Mercosul, há uma lista de agendas comuns. A mais importante do momento é tentar avançar o acordo comercial com a União Europeia. E, no caso de uma vitória do Miller, essa agenda fica muito mais dificultada. Porque ele também não tem nenhum grande apreço pelo bloco. Com essa dificuldade de interlocução com o Brasil, a situação tende a se tornar mais difícil do que já está.
B3 Bora Investir: Para encerrar, queria voltar a pergunta: há um caminho para estabilizar a economia da Argentina?
Silvio Campos Neto: Reforço que o caminho existe, mas é necessário mudar esse modelo econômico mais intervencionista vigente há décadas e que a população está muito apegada. Será que a sociedade está disposta a encarar uma mudança? Aceitar menos subsídios? Menos benefícios? Aceitar o ambiente e os preços de mercado? Uma maior liberdade econômica? Acho que essa é a grande questão diante dos ajustes fiscais que precisam ser feitos.
O Estado da Argentina tem que se ajustar dentro da sua realidade para que ele não dependa, por exemplo, do Banco Central emitir moeda para financiar gastos. Portanto esse é o primeiro passo: o ajuste fiscal. Só que ele é recessivo no curto prazo, ou seja, vai contribuir para um quadro econômico mais grave em 2024 e com uma inflação ainda persistente.
Não é do dia para noite que vai se conseguir resolver essas questões. É necessária não só uma grande mudança de orientação macroeconômica e fiscal, mas também monetária. Um banco central que possa cumprir o seu papel sem financiar o Estado.
Outro passo é mudar as crenças da sociedade dando uma maior liberdade para as empresas e produtores atuarem sem maiores desconfianças. Uma simplificação das regras econômicas também é muito necessária. É preciso acabar com essas taxas de câmbio múltiplas. São situações que ao longo do tempo vão piorando a produtividade e eficiência econômica.
A Argentina tem que focar em ser um país mais produtivo, que gere mais riquezas e exporte mais para atraia dólares e ganhar confiança. É preciso também um governo que transmita confiança para a sociedade, o setor privado e que absorva investimentos estrangeiros. O que a gente vê nos últimos anos, ao contrário, é confiança caindo, empresários saindo e retirando recursos do país. Um exemplo concreto é o Itaú, que acabou de vender suas operações na Argentina.
O país tem que restabelecer a credibilidade e a confiança. É um processo de muitos anos, mas que tem de começar. Se você quer ter um futuro a médio e longo prazo, é preciso recomeçar sobre outras bases, outras crenças econômicas, para retomar um caminho com mais produção e sem toda essa dependência das ações via setor público. Portanto, o equilíbrio macroeconômico e os ganhos de produtividade são o caminho.