UE e Mercosul correm para fechar acordo antes da posse de Milei na Argentina; entenda
Tratado prevê a eliminação de tarifas comerciais com expectativas de negócios para o Mercosul acima dos US$ 100 bilhões. Questões ambientais brasileiras viram entrave
O acordo comercial mais ambicioso já fechado pelo Mercosul. É assim que é tratado pelos governos e especialistas o pacto firmado entre a União Europeia (UE) e o bloco sul-americano em junho de 2019 e que corre para ser ratificado pelos 27 países de UE e os quatro (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) que integram o Mercosul.
Os diplomatas dos dois blocos querem apertar as mãos com o acordo assinado antes da posse do novo presidente argentino, Javier Milei, no dia 10 de dezembro.
O motivo desse corre-corre é que durante a campanha, Milei fez diversos ataques ao bloco, sugeriu retirar a Argentina do Mercosul e defendeu o livre comércio com outros países. Isso pode significar a queda de barreiras comerciais que, muitas vezes, dão preferência a produtos brasileiros.
A expectativa é que a conclusão do acordo seja anunciada até 7 de dezembro, durante a cúpula de chefes de Estado do Mercosul, no Rio de Janeiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os mandatários do Paraguai, Uruguai e Argentina também vão participar do encontro. No governo de Jair Bolsonaro (PL), em 2019, Mercosul e União Europeia assinaram o acordo, mas novas exigências ambientais europeias e a reação forte dos países do bloco sul-americano – principalmente do Brasil – reabriram a negociação.
A seguir te contamos como funcionaria o acordo e o motivo dele ser tão esperado por alguns países.
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Por que criar um acordo entre UE e Mercosul?
A pesquisadora associada do FGV Ibre, Lia Valss Pereira, afirma que o acordo expande os horizontes do Mercosul, que hoje só tem tratados com economias pequenas e de pouco impacto internacional. Para a analista, os europeus são mais beneficiados pelo lado industrial, enquanto o Mercosul – principalmente o Brasil – terá no agronegócio o seu principal trunfo.
“Esse é o primeiro grande acordo que o Mercosul faz com países desenvolvidos. Ele trata não apenas de comércio e investimentos, mas também da abertura de serviços e desenvolvimento sustentável. Os europeus têm mais vantagens na questão da indústria para entrada de produtos manufaturados, enquanto para o Mercosul o ponto importante é a parte agrícola, com mais acesso a mercados. É preciso dizer que não é livre comércio e sim, basicamente, uma ampliação das cotas de produtos considerados mais sensíveis”.
O presidente do conselho do Administração da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), Arthur Pimentel, explica que as exigências de países europeus – principalmente aqueles que defendem muito o seu agronegócio – fez com que as negociações se estendessem mais do que o esperado.
“Embora o governo atual fale que vai fechar o acordo neste primeiro semestre, acredito que há muito o que ser discutido. A vontade permaneceu durante mais de 20 anos, o que não foi suficiente para resolver ou minimizar entraves como exigências ambientais e legislação trabalhista”.
O que prevê o acordo entre o Mercosul e a União Europeia?
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, quando estiver totalmente implementado, vai retirar tarifas sobre 91% dos produtos que a UE exporta para o bloco sul-americano em 10 anos. No sentido contrário, serão retiradas tarifas de 92% dos produtos que o Mercosul embarca para o bloco europeu no mesmo período.
O acordo também vai zerar tarifas para importantes produtos agrícolas exportados pelo Brasil, como suco de laranja, frutas, café solúvel, peixes, crustáceos e óleos vegetais.
As taxas para exportar produtos industriais também serão 100% eliminadas. Os exportadores terão acesso preferencial para carnes bovina, suína e de aves, açúcar, etanol, arroz, ovos e mel. No entanto, haverá cotas máximas para a venda desses produtos.
Pelo lado europeu, itens como veículos e partes; maquinários; produtos químicos e farmacêuticos; vestuário e calçados e tecidos também terão tarifas de exportação eliminadas. Importante pontuar que no caso de veículos, a exportação estará limitada em 50 mil unidades por sete anos. Haverá também cotas entre Mercosul e UE para produtos como queijo, leite em pó e fórmula infantil (leite artificial). Os chocolates e doces, vinhos e outras bebidas alcoólicas e refrigerantes provenientes da União Europeia terão tarifas eliminadas progressivamente.
O acordo também vai ampliar o grau de liberalização do comércio de serviços, como telecomunicações e financeiros; remoção de barreiras para o comércio eletrônico; desburocratizar e reduzir os custos no comércio entre as duas regiões e diminuir entraves sanitários. Empresas dos dois blocos vão poder participar de licitações.
O tratado prevê ainda que a UE pode barrar produtos do Mercosul que não se enquadrem em padrões de segurança alimentar e que estejam fora das leis da Organização Internacional do Trabalho (OIT), como o trabalho forçado.
Pelo lado ambiental, os signatários se comprometem em aumentar a proteção das florestas, além de reduzir a emissão de gases do efeito estufa, pelo Acordo de Paris (a seguir falaremos sobre ele).
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Como funcionaria o comércio Mercosul x UE
A União Europeia é o segundo maior parceiro comercial do Mercosul com 14% das exportações do bloco, atrás da China (29%) e à frente dos Estados Unidos (11%). Pelo lado das importações a situação é semelhante. A UE representou 19% do total dos desembarques para o bloco sul-americano, atrás da China (26%), mas ligeiramente à frente dos americanos. Os dados são do Eurostat, que é o Gabinete de Estatísticas da União Europeia.
Para Lia Valls, o acordo foi assinado em um momento geopolítico de interesse das duas partes. “Pelo lado da Europa, que tem grandes estoques de capital estrangeiro, há uma preocupação de perda de mercado com a entrada da China. Pelo lado do Mercosul e do Brasil há interesses industriais e do agronegócio”.
Em números, a corrente de comércio (volume de importação e exportação) entre os dois blocos ficou em € 88 bilhões em 2021, uma queda de 3,4% em relação a 2011 (€ 90,9 bilhões). Na comparação com 2020, ano de pandemia, houve um aumento de 25,5% nas exportações e de 31,2% nas importações, o que levou a um excedente de € 1 bilhão de euros. Os países sul-americanos exportam para a UE principalmente produtos agrícolas. Já os europeus embarcam itens industriais, principalmente autopeças, veículos e farmacêuticos.
A eliminação de tarifas entre os dois blocos em até quatro anos, apenas sobre produtos manufaturados em setores como químicos, máquinas e equipamentos, pode levar a um incremento comercial de US$ 100 bilhões, dos quais o Brasil contribui com US$ 3,5 bilhões. Os números são da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos.
Segundo a ApexBrasil, atualmente as exportações brasileiras desses produtos enfrentam tarifas de 4,5%, em média. A eliminação delas deve aumentar a competitividade do Brasil em relação a outros parceiros comerciais do bloco. Isso beneficiará também a exportação de produtos de setores que vão além das commodities, o que gera diversificação econômica.
“A abertura de novos mercados para a região faz com que se reduza a dificuldade de entrada de produtos e serviços. Há também uma facilidade para se permitir o acesso a novas fontes de insumos e tecnologias, tanto para as empresas do Mercosul, quanto para a União Europeia, mesmo que em menor escala. Isso estimula a competitividade e amplia o fluxo de negócios. A Europa tem um grande capital investido na América Latina, principalmente no Brasil, e isso beneficiaria em muito o comércio intrafirmas dentro do Mercosul”, explica Arthur Pimentel.
Para a União Europeia, o fim das negociações também marcam uma guinada na economia do bloco. Se ratificado, esse seria o segundo maior acordo já acertado pela UE, atrás apenas pelo firmado com o Japão.
“Os países em geral estão com políticas mais protecionistas. No entanto no caso do Brasil e do Mercosul algum grau de abertura é necessário para que as economias tenham acesso a bens de capital mais barato. O acordo é com o Mercosul, então se pressupõe que haja uma maior integração nas políticas para que esse espaço regional seja mais bem aproveitado”, explica a pesquisadora do FGV Ibre.
Para o Brasil, qual a vantagem de um acordo com a UE?
O acordo também pode melhorar as relações comerciais entre Brasil e UE. Ao longo dos últimos anos, os europeus perderam espaço nas exportações brasileiras. Hoje, a União Europeia representa menos de 20% dos destinos dos produtos brasileiros. Nos anos 1990, era quase um terço.
Em 2022, o bloco foi o segundo com maior participação das exportações brasileiras (15,2%), atrás apenas da Ásia (41,8%) e à frente da América do Norte (14,9%), segundo o Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). Em números, o Brasil embarcou US$ 50,8 bilhões para a União Europeia, um aumento de 39,1% em relação a 2021. As importações também cresceram de US$ 38,2 bilhões em 2021 para US$ 44,2 bilhões no ano passado.
O problema é que quando observamos um período maior da balança comercial Brasil-UE, é perceptível as oscilações das exportações brasileiras para os europeus nas últimas décadas. Entre 2001 e 2011, houve um aumento médio anual no valor das exportações de 14,3%. Na década seguinte, no entanto, o cenário mudou com uma queda de 2,8% – o que fez com que a participação do Brasil no total importado pela União Europeia caísse de 2% para 1,5%.
Um outro movimento observado, segundo um estudo da ApexBrasil baseado em dados do TradeMap, é a primarização da pauta exportadora brasileira para o bloco. Entre 2012 e 2021, a participação de produtos primários passou de 35,8% para 53,7% do total exportado. Os principais itens são commodities: óleos bruto de petróleo, soja, farelos de soja e outros alimentos para animais, minério de ferro, e café não torrado. No total, esses principais produtos representaram 47,2% das exportações brasileiras para a UE em 2021.
Pelo lado da manufatura, ou seja, da indústria, o levantamento mostra que os ramos de máquinas e equipamentos, produtos químicos e outros artigos manufaturados podem se beneficiar mais da eliminação tarifária prevista no acordo. O mercado europeu importa mais de US$ 60 bilhões de máquinas, das quais o Brasil contribui com apenas US$ 1,5 bilhão.
A Diretora de Comércio Exterior da Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), Patrícia Gomes, explica que o setor de máquinas e equipamentos tem hoje um déficit na balança comercial com os europeus. Esse número negativo também se aplica a receita líquida do setor que despencou 5,9% no ano passado.
“O acordo UE-Mercosul pode trazer oportunidades para alguns setores e nichos. E o trabalho na agenda da sustentabilidade, principalmente, diante da crise energética europeia, fortalece essas oportunidades. Mas também é importante que sejam implementadas medidas e reformas internas para que o setor ganhe em competitividade e possa, de fato, reverter essas oportunidades em resultados”, explica.
“Com o acordo, o país vai ter mais acesso a bens de capital mais baratos. Isso de alguma forma pode ser um choque positivo de produtividade, principalmente para alguns setores que são mais importadores”, completa Lia Valls.
Em 15 anos, o acordo pode incrementar um valor entre US$ 85 bilhões e US$ 125 bilhões à economia brasileira, segundo a Secretaria de Comércio Exterior (SECEX). Os investimentos no país nesse mesmo período podem alcançar US$ 113 bilhões. Pelo lado político, o presidente do conselho do Administração da Associação de Comércio Exterior do Brasil, afirma que o acordo pode trazer de volta o protagonismo do Brasil no Mercosul.
“Uma grande vantagem seria mostrar a capacidade de liderança do Brasil no Mercosul, à medida que conseguiu firmar um acordo dessa relevância. Nós temos o agronegócio como o nosso carro chefe, a soja, por exemplo. Isso sem falar nos acordos com uma série de países como Angola, Guiana, México, Panamá, Suriname e Venezuela. No Mercosul, tem parcerias com Bolívia, Chile, Colômbia, Cuba, Egito, Equador, Índia, Israel e União Aduaneira da África”, afirma Arthur Pimentel.
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Entraves ambientais do acordo
Um dos principais entraves para a ratificação do acordo são as discussões ambientais. A União Europeia apresentou recentemente um documento adicional ao tratado (chamado de side letter) com condições bastante rígidas em relação a compromissos com o meio ambiente, inclusive com possíveis aplicações de sanções ao Brasil.
“Só agora, nos últimos dias de abril, ou primeiros dias de maio, a União Europeia apresentou o documento adicional. Esse documento é extremamente duro e difícil, criando uma série de barreiras e possibilidades, inclusive, de retaliação, de sanções com base em uma legislação ambiental europeia extremamente rígida e complexa de verificação. Isso pode ter prejuízos enormes. Isso aumenta, inclusive, os compromissos, por exemplo, no Acordo de Paris, os compromissos que o Brasil vai respeitar e vai fazer”, disse o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, no início de maio.
Essas dificuldades em relação a pauta ambiental tem sido criadas principalmente pela França. O país insiste que o tratado UE-Mercosul não deve ser implementado sem garantias sólidas sobre o cumprimento do Acordo de Paris. Por isso, a ideia do bloco sul-americano é apresentar uma contraproposta aos europeus.
Nos bastidores diplomáticos, a versão para essa discussão passa mais pela questão do protecionismo agrícola francês, do que pelo meio ambiente. Com o potencial do agronegócio brasileiro, produtores franceses temem concorrência desfavorável em um cenário de eliminação de tarifas.
Os altos índices de desmatamento, principalmente nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro (PL) ajudaram a travar a ratificação do acordo. Países como Áustria, França e Espanha também puxaram as críticas e brecaram a tramitação do acordo dentro da União Europeia.
“A questão ambiental na Europa é muito forte. E essa ‘Side Letter’, que é uma espécie de adendo, veio só para firmar que os compromissos ambientais dos países fossem cumpridos. Compromissos esses que são voluntários. Para o Brasil, na questão do desmatamento, acredito que é impossível de cumprir, mas pode ser negociado”, afirma a pesquisadora.
“Deve haver um reforço para a redução da vulnerabilidade dessas alterações climáticas. Precisamos estar atentos ao avanço rumo a um modelo de crescimento regenerativo, cuidadoso, com uma transição para a economia circular e uma discussão de como proteger a saúde e o bem-estar tanto da Europa quanto da América. Portanto é um universo de ações muito amplo e que os países precisam pensar nesses entraves e como resolvê-los”, conclui Arthur da AEB.
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