Entrevistas

“É urgente entender que a responsabilidade pela aposentadoria é individual”, diz Ana Leoni

Ao Bora Investir, nova CEO da Planejar falou sobre a importância do planejamento a longo prazo para aposentadoria, desafios atuais e democratização no acesso a planejadores

Apesar de quase 60% da população brasileira pretender poupar e se planejar para a aposentadoria, apenas dois em cada dez brasileiros efetivamente já começaram uma reserva financeira para essa fase da vida.  É o que aponta a 7ª edição do Raio X do Investidor Brasileiro, pesquisa realizada pela Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais) em parceria com o Datafolha.

Para a nova CEO da Planejar (Associação Brasileira de Planejamento Financeiro), Ana Leoni, esse é um dado preocupante, que não representa a urgência de se preparar para uma etapa importante da vida, e que exige organização de longo prazo. 

“Me parece que o brasileiro ainda não se deu conta do senso de urgência. E esse senso não chegou porque o envelhecimento chegou mais rápido do que o estado de consciência das pessoas”, aponta ela.

Ainda segundo os dados do Raio X do Investidor Brasileiro, metade da população não aposentada (50%) considera que a previdência pública (INSS) vai compor a maior parte de sua renda durante a aposentadoria. O que, de acordo com Leoni, é um erro.

“É urgente que as pessoas entendam que a responsabilidade pela aposentadoria é delas e de mais ninguém, nem do governo, nem do empregador. É necessário desenvolver o senso de auto responsabilidade das pessoas”, ressalta.

A CEO assumiu em agosto o cargo da associação que está presente em 27 países no mundo, com mais de 203 mil profissionais certificados, sendo mais de 10 mil no Brasil. Com quase 30 anos de experiência, Ana foi eleita pela Forbes como uma das mulheres mais influentes para se acompanhar no mercado financeiro.

Em entrevista ao Bora Investir, Ana Leoni, falou também sobre os desafios de se planejar nos tempos atuais, a importância da educação financeira e da organização no longo prazo, o papel dos planejadores financeiros e as perspectivas do setor com o advento da Inteligência Artificial. Confira a entrevista abaixo:

Bora Investir – Quais os principais desafios para se planejar nos tempos atuais de incertezas econômicas com altas no custo de vida?

Ana Leoni – Uma vida financeira sem planejamento é um trem desgovernado. Sempre existirão variáveis que vão afetar a vida das pessoas em maior ou menor grau. Aquelas que não têm uma vida mais organizada e mais planejada ficam mais vulneráveis a essas variáveis. 

O tempo inteiro a gente vai precisar conviver com esses fatores externos, seja a inflação, uma hora pressionada para baixo e outra para cima, a taxa de juros, ou situações econômicas locais e internacionais. Hoje as coisas são muito mais integradas e mais misturadas e essa mistura acaba fazendo com que tenha muita interferência e influência nos diferentes mercados. 

Então, essas coisas sempre vão existir e são variáveis que a gente não consegue controlar. O que a gente precisa é entender como nós vamos nos comportar do ponto de vista financeiro, a partir dessas variáveis. 

O único instrumento possível para isso é um planejamento, é uma mínima organização financeira. Ela é o ponto de partida, porque vai te dar parâmetro do quão perto ou longe você está dos seus objetivos, e quais as estratégias que você precisa adotar a cada mudança de cenário. Porque senão, de fato, é uma coisa desgovernada e você nem sabe de que forma você está sendo afetado por aquela variável.

Bora Investir – O que impede as pessoas de se planejar adequadamente?

Ana Leoni – O que impede vem muito do próprio comportamento que a gente tem quando lida com dinheiro. Eu costumo dizer muito isso, que lido perfeitamente com o dinheiro dos outros, mas, com o meu, tenho as minhas questões. Essas questões passam pelas influências que eu recebo e pelas inseguranças que tenho em relação às minhas decisões. 

As questões emocionais impactam muito e elas são impeditivas para as pessoas encararem isso, porque quando você senta para fazer um planejamento, o que você vai encarar? Você vai encarar as suas decisões, o seu estilo de vida, as suas escolhas, que podem estar certas ou estar te conduzindo a uma coisa que pode ser bastante preocupante para você no curto prazo.

Isso é de fato um bloqueio muito forte para as pessoas. Mas quando elas conseguem ultrapassar essa fronteira, começam a enxergar o benefício daquilo. É como acordar cedo para fazer atividade física, você acha um horror. As pessoas mais motivadas são as que encontraram algum benefício naquilo e a motivação se retroalimenta. Para a vida financeira, a gente pode fazer esse mesmo paralelo.

Um outro impeditivo é que as pessoas também acreditam que fazer um orçamento, fazer um planejamento, é o único passo. E não é, ele é o primeiro de uma grande maratona, de uma constante vigilância que você tem que ter em relação à sua vida econômica. Essa sensação das pessoas de estarem perdendo tempo com isso se dá por elas não saberem  esperar o benefício chegar.

Bora Investir – Como você vê o nível de educação financeira da população? As pessoas  já entenderam que precisam pensar no longo prazo?

Ana Leoni – Hoje as pessoas têm um estado de consciência muito diferente do que tinham no passado. Duvido que você converse com alguma pessoa e ela já não tenha ouvido falar que ela precisa acessar a educação financeira de alguma forma. Já ouviu falar do que isso significa ou já foi abordado de alguma forma nas redes sociais ou em algum outro meio de comunicação e quem não foi, intuitivamente, sabe que precisa se organizar.

No passado, isso não era um tema recorrente. Quando eu comecei a trabalhar com educação financeira, não era uma pauta, não era pop, não era uma coisa que estava na mesa de bar se discutindo. Hoje se está. Só que o estado de consciência apenas não faz a pessoa mudar de comportamento. 

O paralelo que eu faço é com o cigarro. Atualmente  as pessoas sabem o mal que fumar pode causar para a saúde. Nos anos 30, 40, 50, não se tinham estudos que comprovassem que aquilo era um mal para as pessoas. Elas fumavam de uma maneira ignorante, no sentido da falta de informação. 

Isso também acontecia com relação à educação financeira. Só que ainda existem novos fumantes, mesmo sabendo de todos os malefícios. Assim, também hoje há pessoas com dificuldade de mudar o seu comportamento, mesmo sabendo da importância de organizar a vida financeira.

Bora Investir – O que é necessário para a mudança de comportamento na hora de investir?

Ana Leoni – Um ponto é trazer o estado de consciência. Mesmo que a pessoa não faça uma organização financeira, ela precisa saber o que e quanto ela está devendo. E saber que ela está deixando de fazer alguma coisa porque ela já tem aquela informação de alguma forma. 

Outra coisa que ela precisa é de uma regulação, por mais que isso pareça tão distante do nosso cotidiano. É preciso  um arcabouço que proteja o consumidor, o investidor e o comprador para que a pessoa entenda que aquele ambiente é seguro para ela e capaz de ajudá-la a vencer as incertezas e as dúvidas que sempre se tem em relação ao dinheiro.

A outra coisa é o papel das instituições nessa equação. Elas precisam abordar seus clientes de uma maneira mais individualizada, mais humanizada, criar esse relacionamento que ajude as pessoas a entenderem que elas terão o amparo necessário para o seu processo decisório.

Bora Investir – Como fazer um planejamento sem pular etapas de entendimento?

Ana Leoni – No fim, a educação financeira também pode ser dividida em três níveis. O primeiro é a formação. Seja com os projetos que hoje se têm nas escolas ou mesmo em casa. 

Depois você tem a informação. O ideal é que ela surja no momento em que você precisa tomar sua decisão. Faço sempre uma analogia: quando você compra qualquer coisa ou qualquer serviço, você estuda, faz um curso e vai buscar informações básicas sobre aquilo para quando você precisar usá-lo. Um profissional qualificado pode te ajudar ainda mais com outras informações para que você decida com segurança.  

O terceiro ponto da educação financeira é a regulação. Então, de novo, esse ambiente que permita, a partir do que você quer fazer, estar abrigado para você de forma simples e entendível.

Bora Investir – Qual a melhor maneira de se planejar os investimentos a longo prazo?

Ana Leoni – Olha, eu escrevi duas colunas e sempre as cito.. Uma delas era assim, “você está indo para a renda variável ou fugindo da renda fixa?” Essa coluna eu escrevi quando a gente estava com a taxa de juros bem baixa, o que empurrou todo mundo a ter que pensar na diversificação dos seus investimentos. Exatamente um ano depois, eu escrevi outra coluna que dizia “o bom investidor a renda fixa torna”. Porque foi uma avalanche de volta para a renda fixa. 

Quando se olha o cenário, a gente está falando de uma taxa de juros, que é bastante atrativa e ela acaba sendo um conforto para aqueles rentistas, não necessariamente investidores. Porque você vai colocar o seu dinheiro lá, você vai ter a sua rentabilidade num ambiente bem menos volátil, em instrumentos que são muito mais simpáticos aos olhos do investidor brasileiro, justamente por conta deste histórico de taxa de juros alto. 

Mas, quando falamos de um planejamento que leva em consideração objetivos de curto, médio e longo prazo, é preciso levar  em consideração o contexto que aquele indivíduo está inserido, os anseios da família dele, os objetivos, o pensamento em aposentadoria, e o caminho é uma carteira diversificada de investimentos.

Não existe uma coisa ou outra, existe uma coisa e outra. Então, você precisa ter uma reserva que te cumpra as necessidades de curto prazo e que garanta liquidez, não rentabilidade. Também existem os seus projetos de vida que são projetos de médio prazo. E, quando você pensa no longuíssimo prazo, você também precisa levar isso em consideração.

O planejamento serve, inclusive, como um guia para entender quais as oportunidades de curto e médio prazo você deve aproveitar, sem perder o foco dos seus objetivos.

Bora Investir – Em relação à aposentadoria, as pessoas têm se preocupado mais? Quais são os direcionamentos sobre o tema?

Ana Leoni – No Raio-X Investidor da Anbima, 50% das pessoas acreditam que os recursos que a sustentarão na aposentadoria virão do INSS. Isso mostra o que as pessoas têm feito muito pouco em relação a isso. Se você olhar também os dados de investimentos nos fundos de previdência, é tudo um dígito. As pessoas “investem” mais em bets (apostas online), porque pensam que é um investimento, do que em fundos de investimento ou em planos de previdência. 

Me parece que o brasileiro ainda não se deu conta do senso de urgência. E esse senso não chegou porque o envelhecimento chegou mais rápido do que o estado de consciência das pessoas.

Na França, a população levou 170 anos para chegar ao envelhecimento atual e, no Brasil, a gente levou 25, 30 anos. Nós envelhecemos muito rápido, sem nos dar conta desta longevidade porque ela aconteceu durante a nossa geração e isso não proporcionou o senso de urgência necessário para tomarmos providências a respeito.

É urgente que as pessoas entendam que a responsabilidade pela aposentadoria é delas e de mais ninguém, nem do governo, nem do empregador. É necessário desenvolver o senso de auto responsabilidade das pessoas.

Hoje, a Previdência Privada é tida como Previdência Complementar. E o que eu gosto de dizer é que não é uma Previdência Complementar e sim a Previdência Principal, já que uma complementar seria a do governo. Essa inversão de conceito é uma inversão importante da gente colocar na cabeça das pessoas.

E mais do que só pensar em produtos financeiros, um bom planejamento considera uma série de facetas e fatores importantes. O seguro de vida, a previdência, os investimentos, uma sucessão bem organizada. Isso tudo alivia o peso da gente colocar tudo num lugar só. É um conjunto.

Bora Investir – Herança parece ser um tema que tem ganhado maior preocupação da população com as reformas que podem acontecer. Quais as dúvidas mais recorrentes sobre o assunto e quais as orientações para quem precisa lidar com o tema?

Ana Leoni – Primeiro que há um mito muito grande de que só é preciso pensar nisso quem tem muito dinheiro. E, ao contrário, pra quem tem pouco, pra quem tem mais ou menos, e pra quem tem muito dinheiro, pensar numa sucessão é fundamental. Não faltam casos de pessoas que não conseguem acessar patrimônio ou que até desconhecem o que têm direito. 

Um processo de sucessão começa no momento em que você constitui a sua família, porque é algo que envolve  todo o grupo. Até a herança mais simples, de  um patrimônio financeiro, requer providências de deixar uma liquidez em um instrumento em que os seus herdeiros possam acessar para fazer um inventário.

A pessoa pode, por exemplo, ter direito a uma herança de R$ 50 milhões, mas não ter dinheiro para pagar o inventário e sacar, o que fará com que aquilo leve anos na justiça até ser resolvido. Tem uma coisa super interessante, que é o seguinte: quando você tá fazendo um plano de previdência, por exemplo, o ideal é você colocar todo mundo ali na apólice em alguma medida, porque isso facilita o acesso aos herdeiros.

Acho que o processo de sucessão e de herança tem que ser pensado além dos benefícios fiscais. É um ato de amor que a gente faz pela nossa família ou para quem a gente queira, é simplificar a vida dos que ficam.

É muito simples, mas não é fácil. Você precisa vencer o medo de falar sobre o assunto, às vezes ainda a gente vê muito isso nas pessoas, porque é um tabu. No passado, as pessoas morriam muito cedo, então elas nem tinham tempo para pensar nisso. Hoje a gente tem um tempo ,instrumentos, e profissionais que podem nos ajudar.

Bora Investir – Quais os desafios dos planejadores nos tempos atuais e como você vê a ascensão da IA no setor?

Ana Leoni – Acho que atualmente tem mais oportunidade do que desafio, porque as pessoas estão sendo convocadas a pensarem mais na sua vida financeira, então isso abre espaço para que esses planejadores possam trabalhar e atuar. 

O desafio é separar o joio do trigo, ou seja, quem de fato são pessoas sérias, certificadas, qualificadas, éticas para se relacionar com os clientes, autorizadas para isso, e aqueles aventureiros que se promovem, se vendem como sendo especialistas no assunto.

Este é um desafio até para a Planejar como associação, de enaltecer de fato a qualificação técnica dos profissionais CFPs, mostrar que é necessário a busca de profissionais que sejam realmente qualificados para atender os clientes nas suas necessidades financeiras. Mas eu vejo um mercado de grande potencial de crescimento porque o brasileiro ainda investe pouquíssimo e precisam se conscientizar que eles precisam investir.

Eu acredito que a evolução tecnológica, seja qual for, é uma aliada. Hoje você tem acesso a muita coisa e a inteligência artificial veio pra ficar, só que eu acho que o desafio nesse caso é entender que somos a única geração que vai ser capaz de ensinar a inteligência artificial.

Nós estamos num momento crucial, nós somos os educadores dessa inteligência artificial. Como ela vai estar alfabetizada é um papel nosso pra que ela se regenere a partir de princípios éticos claros, a ponto de se tornar um grande aliado do cliente, do profissional e da sociedade de uma maneira geral.

No fim, o que mais se leva em consideração, o maior valor que se tem é a relação que um profissional pode estabelecer com o seu cliente. Esse laço de confiança, de sorriso, de emoção, de parceria, isso é prioritariamente feito nas relações humanas. E a inteligência artificial vem para todo o resto, para ajudar a ser preditivo nas sugestões, de ser pró-ativo naquilo que precisa, de criar instrumentos que ajudem e sejam mais acessíveis para os indivíduos se conscientizarem mais sobre a importância da sua vida financeira e mudar o comportamento.

Bora Investir – Como democratizar o acesso da população a planejadores financeiros?

Ana Leoni – A gente tem dois grupos de planejadores hoje no Brasil, numa segmentação mais simples. Um são os planejadores financeiros CFPs que estão dentro das instituições financeiras e que hoje atendem boa parte dos clientes que estão no private banking, é verdade. Mas muitos profissionais já estão ali na alta renda buscando essa especialização para atender os clientes da carteira das próprias instituições financeiras.

Uma outra camada são aqueles profissionais que atuam diretamente com clientes, são os independentes que fazem esse planejamento para os clientes. Existe aquela frase que é a seguinte: você pode achar que algo custa caro, mas vai custar mais caro ainda sem ele.

Ainda há uma percepção de que esse é um serviço para poucos, só para quem tem muito dinheiro, assim como a questão da herança que a gente estava falando há pouco. Porém, cada vez mais a gente tem mais profissionais, têm mais oferta desse serviço, mas o ponto é que ter uma orientação profissional hoje, pode lhe poupar muito no futuro. 

Talvez seja esse o papel da Planejar, conscientizar as pessoas cada vez mais sobre isso. Porque vai te ajudar a tomar um crédito que é um crédito mais eficiente para o seu objetivo, vai ajudar você a organizar as suas finanças a ponto de no curto ou médio prazo você já sentir os resultados daquilo, vai ajudar você a pensar nesse longo prazo e a construir a segurança que você precisa lá na frente. A gente está falando de um investimento importante a ser feito.

Quando você sente alguma coisa, você vai ao médico, quando precisa fazer uma reforma em sua casa, você procura um arquiteto ou um engenheiro. Então, quando você precisar resolver as suas questões financeiras, você tem que procurar um profissional, um planejador para isso.