“Só ganho de produtividade vai fazer a China voltar a crescer forte”, diz Roberto Dumas
Em entrevista ao Bora, o professor de economia do Insper falou sobre o menor crescimento da China, os desafios para o gigante asiático e as perspectivas de bons negócios para o Brasil
Mercado imobiliário atolado em recessão. Fim do bônus demográfico. Impacto de decisões políticas na vida da população e das empresas. Regras duras para companhias de tecnologia. Essa lista de entraves levou a economia da China a engatar marcha lenta em 2023 – em relação aos padrões de crescimento da segunda maior potência mundial.
Para este ano, as perspectivas de melhora passam por transformações profundas na economia chinesa, em meio a um governo cada vez mais controlador. Essa é a visão do professor de economia do Insper e mestre em economia chinesa Roberto Dumas.
“Quando acabou o lockdown, os chineses estavam perdidos com o governo, que não queria que a população comprasse apartamentos e casas para especulação, só para morar. Tudo isso minimiza o consumo”, explica Dumas.
Para o professor, o gigante asiático só vai voltar a crescer acima de 6% se conseguir aumentar sua produtividade. O problema é que o maior controle do Estado, a guerra comercial com os EUA e as mudanças nos locais de produção tornam esse objetivo um desafio.
“Com a guerra da Ucrânia e a pandemia, muitos países diversificaram sua cadeia de fornecimento para ficarem menos dependentes da China. (…) O país quer se transformar numa potência de inteligência artificial, mas os EUA, frente a esse tabuleiro, proibiram a exportação de equipamentos para minar a produção de mais semicondutores na China”.
Em relação ao Brasil, as exportações do país para a China ultrapassaram os US$ 100 bilhões no ano passado, um recorde. Esse movimento deve se repetir em 2024. “O agronegócio brasileiro tende a continuar se beneficiando, a despeito de um crescimento menor da China”.
Confira abaixo a entrevista completa com o professor de economia do Insper e mestre em economia chinesa Roberto Dumas.
Bora Investir: A China enfrenta problemas para crescer no mesmo ritmo dos últimos anos. O que aconteceu com a segunda maior economia do planeta?
Roberto Dumas: Primeiro é preciso falar sobre o lado do crescimento potencial da China, ou seja, os fatores que fazem o país avançar. Pela equação de Solow, há três fatores que fazem o PIB aumentar. O primeiro é a população, ou seja, chineses entrando no mercado de trabalho. Acontece que essa população do país está em queda, o bônus demográfico está no fim.
O segundo ponto é que você precisa ter capital para investir, o que a China tem muito. Só que se você pegar o Incremental Capital Output Ratio – que é o investimento dividido sobre a variação do crescimento do PIB real – o país passou a ter retornos decrescentes. A China investe principalmente em manufatura, ativos imobiliários, infraestrutura, com retornos em queda. Ou seja, a China investe, mas não consegue um Produto Interno Bruto que tinha em 2008, 2009, 2010. Isso se chama taxa de retornos decrescentes.
Sobrou a produtividade, que é muito importante no longo prazo. Acontece que ela passou a ser impactada pelo lado geopolítico chinês. O país quer se transformar numa nova potência de inteligência artificial, com produção de semicondutores, mas os Estados Unidos, frente a esse tabuleiro geopolítico, proibiram a exportação de equipamentos, o que possibilitaria a China produzir mais semicondutores de última geração.
Então são esses três fatores que acabam por impactar o crescimento chinês no curto e no longo prazo e que devem seguir em 2024.
Bora Investir: O governo chinês costuma inundar a economia com liquidez para impulsionar o crescimento. A prática, desde Hu Jintao (2009), segue com Xi Jinping. Desde a pandemia, isso não tem dado certo – inclusive com impactos no mercado imobiliário. Por quê?
Roberto Dumas: Desde 2008, a China vem aumentando os investimentos e o grau de alavancagem [capacidade de contrair empréstimos] do país. Hoje as empresas estatais e o governo como um todo têm uma alavancagem próxima de 350% do PIB, o que é muito alto.
Em 2020, o Xi Jinping soltou as três famosas redlines [linhas vermelhas]. A principal delas determinou que as incorporadoras imobiliárias não poderiam mais ter o caixa abaixo da dívida de curto prazo. Isso levou, por exemplo, a Evergrande e a Country Garden a começarem a vender ativos – porque havia uma bolha – e isso acabou numa espiral deflacionária. O preço dos ativos começou a cair. Portanto, a crise do setor de real estate [imobiliário] foi causada pelo próprio presidente da China, ao entender que era preciso desalavancar. O problema é que isso afetou o setor que contribui por 30% do PIB.
O governo também adotou medidas como a política de Covid zero – que foi absolutamente draconiana – em que a população não podia sair de casa. Teve também o crackdown [regras mais duras de regulação de empresas de tecnologia para combater a concorrência desleal e a maneira de usar dados pessoais de usuários], que impactou companhias como a Alibaba, Tencent e Bytedance, do TikTok.
Tudo isso deixou a população com receio, principalmente a partir de 2020, de que o Partido Comunista Chinês estava entrando demais na vida privada das pessoas e das empresas. Quando acabou o lockdown, os chineses estavam perdidos com o governo, que não queria que a população comprasse apartamentos e casas para especulação, só para morar. Isso nas palavras do Xi Jinping. Tudo isso minimiza a vontade do consumo de bens de alto valor, o que dinamiza mais ainda o processo de desinflação dos ativos imobiliários.
Bora Investir: Por que os chineses compram casas para especulação?
Roberto Dumas: Os chineses têm comprado casas para especulação, ou seja, apenas com a intenção de vendê-las a um preço maior, porque não há onde investir. Isso acontece porque a China tem um mercado financeiro altamente regulado, ou seja, existe uma repressão financeira. Você tem uma conta capital fechada. Por exemplo, se eu quero investir em Taiwan, na Coreia ou no Japão, não pode. A conta capital é parcialmente fechada, 40% dela. É proibido para o chinês sair e investir em outro país livremente.
Você tem um esquema chamado Qualified Domestic Institutional Investor – que é o chinês investindo fora do país – e o Qualify For Institutional Investor – que é o estrangeiro investindo na China. Então, onde a população vai ganhar dinheiro? Ou na bolsa de Xangai, na de Shenzhen ou nos ativos de Real Estate. Como o Xi Jinping deixou claro que a população não pode comprar casas para especulação, não tem como o negócio voltar e crescer assustadoramente.
O presidente da China precisa tomar cuidado com o stop and go [prática de fomentar a economia, sem provocar grandes turbulências]. Óbvio que ele não vai deixar a economia cair numa hecatombe, ou seja, numa recessão de 1% ou 2%. Ele pode estimular os ativos imobiliários, mas sem que ocorra um hard landing – quando o país está crescendo 5% e de repente entra numa recessão com o seu PIB caindo para 1%, por exemplo.
Bora Investir: A China vive um processo de desinflação e a expectativa é de uma redução dos juros para estimular o consumo. Essa decisão poderia melhorar a demanda interna do país?
Roberto Dumas: Até pode, mas chega uma hora que a política monetária acaba não fazendo efeito. Se o país está num processo deflacionário, você espera o preço cair. Se para piorar eu ainda não vendo, isso derruba o preço mais ainda. O problema é que a hora que os valores chegarem no fundo do poço, as construtoras começam a derrubar mais o preço e você entra numa espiral deflacionária.
O país precisa voltar a pensar que agora é ganho de produtividade que vai fazer a China voltar a crescer 5% ou 6%. Tanto é que nem o governo acredita que o PIB vai avançar 6%. A meta é 5,5%. Esse inclusive é o crescimento esperado em 2024. Então aqueles tempos que a gente via a China crescendo 10%, 8%, acabaram.
Bora Investir: Passando agora para a relação comercial da China com o mundo. Mesmo com uma melhora em dezembro, as exportações do país têm desacelerado. O que aconteceu e qual o impacto para 2024?
Roberto Dumas: Com a Guerra da Ucrânia e a pandemia, muitos países, inclusive os Estados Unidos, estão diversificando a sua cadeia de fornecimento. Então muitas nações ao invés de ficarem totalmente dependentes da China, começam a produzir nos seus próprios países. E tem outros exemplos. A Europa comprava gás da Rússia e viu que não dava para confiar em Vladimir Putin. Os Estados Unidos começaram agora a comprar cada vez mais o México. Isso sem falar do tabuleiro esquentando em Taiwan, com a vitória de Lai Ching-te do Partido Progressista Democrático. O presidente da China já falou que vai resolver essa questão até o final do seu mandato.
Então as nações democráticas passam a fazer friend-shore [deslocamento da produção para países amigos], onshore [produção no próprio país] e near-shore [em nações mais próximas]. Há uma guerra com o Hamas, na Ucrânia e os Houthis, que estão atacando no Mar Vermelho. Ou seja, não dá para confiar nessa cadeia logística. Nessa realidade de transporte, o preço do frete pode explodir de uma hora para outra. Então, o país passa a preferir comprar de alguém perto de casa.
Esse reescalonamento da globalização faz também com que as exportações chinesas sejam impactadas. Então, em 2024, o governo deve voltar a estimular a economia da China, mas com certeza teremos um crescimento menor que em 2023, algo em torno de 4,5%.
Bora Investir: A China é responsável por quase 40% do crescimento da economia mundial. Essa perda de ritmo pode afetar o PIB global?
Roberto Dumas: Pode sim, mas parte dessa desaceleração pode ser substituída, por exemplo, por um crescimento maior da Índia. As taxas de juros ainda estão elevadas nos Estados Unidos, no Brasil e na zona do Euro. Então não é só um crescimento menor da China que impacta na economia global, mas claro que isso acaba suscitando a intempéries no preço de determinados ativos, principalmente commodities metálicas.
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Bora Investir: Em relação ao Brasil, a China é o nosso maior parceiro comercial. Só em 2023, exportamos mais de US$ 100 bilhões. Qual a sua expectativa para 2024?
Roberto Dumas: O agronegócio brasileiro tende a continuar se beneficiando, a despeito de um crescimento menor da China.
Vamos pensar o seguinte: a China é como um McDonnell Douglas, aquele avião de três turbinas. As exportações líquidas não estão crescendo como antes. Os investimentos não avançam do mesmo jeito. No entanto, o consumo da população está crescendo mais, com a injeção de dinheiro pelo governo e o aumento da urbanização.
O consumo chinês pode ser visto como uma política pública e a compra de alimentos é a prioridade. Com a febre suína, o país precisa importar mais soja e milho – que ele parou de comprar dos Estados Unidos. Então as exportações [brasileiras] de carne suína, milho e soja bateram recorde.
A exportação de minério de ferro do Brasil para a China subiu apenas 8% de janeiro a novembro de 2023, comparado a janeiro novembro de 2022. Isso em quantidade e não preço. Então eu estou muito mais otimista nas vendas de commodities agrícolas do que metálicas.
Bora Investir: A China e os EUA têm travado uma batalha com restrições sobre exportações de tecnologia. Isso pode enfraquecer ainda mais a economia do país?
Roberto Dumas: Com certeza. Além da guerra tecnológica, o Partido Comunista Chinês está cada vez mais mostrando os dentes para empresas privadas e estrangeiras. O governo tem a pretensão de colocar alguém do Partido no Conselho de Administração das companhias, o que tiraria o controle delas. Isso leva as empresas para outros lugares como Vietnã, Camboja, Índia. A China passou a se tornar um país inóspito para investimentos estrangeiros, dada a presença cada vez maior no Partido Comunista na vida dessas empresas.
Volto a citar que o bônus demográfico acabou. O país tem capital, mas quanto mais investe menos gera riquezas. Sobrou produtividade e para ela aumentar, você depende também da tecnologia dos Estados Unidos e dos insumos para a fabricação de semicondutores. E aí entra a questão de Taiwan, que nós comentamos, que é o maior fabricante desse importantíssimo componente tecnológico do mundo atual.
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