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Arcabouço fiscal: “uma boa proposta que só precisa ser aprimorada”, diz Felipe Salto

Em entrevista ao Bora, economista-chefe da Warren Rena e especialista em contas públicas, fala sobre a importância da arrecadação para a nova âncora fiscal e o desafio de equilibrar as contas públicas

Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena e especialista em contas públicas
Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena e especialista em contas públicas

O texto da nova âncora fiscal já está em análise pelo Congresso Nacional. Se aprovado, o projeto vai substituir o teto de gastos, regra que limita à inflação o crescimento de grande parte das despesas da União e que foi constantemente estourado nos últimos quatro anos para fazer caber o país dentro do orçamento.

O novo arcabouço prevê regras com foco em dois pontos principais: arrecadação e gastos. No primeiro, o resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem considerar o pagamento dos juros da dívida pública) só pode variar dentro do intervalo de 0,25 ponto percentual para mais e para menos. Para 2024, a meta é de um resultado zero, ou seja, igualar receita e despesa. No segundo, as despesas do governo podem crescer acima da inflação (diferente do teto de gastos), no piso de 0,6% e limite de 2,5%. Há também uma trava, que limita o crescimento das despesas em até 70% do crescimento da receita dos últimos 12 meses.

O sucesso das novas regras fiscais passa pelo forte aumento da arrecadação. Em um momento em que a atividade caminha para uma desaceleração, a equipe econômica tem apostado em pacotes para elevar as receitas. O primeiro, lançado em janeiro, traz um programa de parcelamento de dívidas. O segundo trouxe a discussão em torno da taxação dos e-commerces, que driblam as regras da Receita Federal e não pagam impostos, além da polêmica isenção às pessoas físicas das remessas internacionais com valor inferior a US$ 50

O problema é que muitas dessas medidas dependem tanto de aprovação no Congresso, quanto de decisões judiciais. É o caso do julgamento no Superior Tribunal de Justiça que decidiu que o governo pode cobrar impostos de empresas que forem beneficiadas por incentivos fiscais nos Estados. A decisão dá um reforço de R$ 90 bilhões no caixa do governo. No entanto, o ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, suspendeu o julgamento por considerar que pode haver decisões conflitantes. O plenário do SFT julga a decisão do ministro nesta semana.

Pelas projeções da corretora Warren Rena, o governo precisa de um aumento nas receitas na ordem de R$ 100 bilhões a mais em 2024 e R$ 50 bilhões em 2025 para atingir o piso das metas de resultado primário do arcabouço fiscal. “Essa meta de primário que o governo colocou na LDO (de zerar o déficit no ano que vem) é difícil de ser alcançada com as premissas que a gente tem hoje”, diz Felipe Salto, especialista em contas públicas, ex-secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente.

Acompanhe outros trechos da entrevista com o economista-chefe da Warren Rena.

B3 Bora: O novo arcabouço fiscal tem como foco o aumento da arrecadação e as metas de superávit primário (diferença entre o que o governo arrecada e o que gasta, sem contar os juros da dívida). Assim, o governo tem procurado medidas para impulsionar os seus ganhos e fazer a âncora fiscal ser crível. Como você analisa esses mecanismos e o quanto eles são factíveis?

Felipe Salto: O novo arcabouço fiscal tem dois eixos. O primeiro é uma regra de gastos, que substitui a antiga prevista na emenda 95 de 2016 [teto de gastos], e que foi modificada pelo menos quatro vezes ao longo dos últimos quatro anos. Essa regra de gastos por si só, tende a produzir efeitos fiscais positivos no sentido de controle da despesa, o que melhora o resultado primário e a dívida. 

O segundo eixo são as metas de resultado primário – receita menos despesas, sem considerar o gasto com juros. Desde 1999, o país adotou – dentro da lógica do regime de metas de inflação – o sistema de metas de resultado primário. Se soma a isso, em maio de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, que consagrou esse sistema de metas e resultado primário. 

A novidade agora é que você vai ter não só a meta anual, mas também para três anos à frente. Atualmente, todo ano a Lei de Diretrizes Orçamentárias aponta a meta anual e para dois anos à frente. A outra novidade é que isso vai ter uma banda [intervalo] – de 0,25 ponto percentual para mais ou para menos em percentual do PIB, isso no período de 2024 a 2027. No período posterior fica indefinido.

Comecei com esta introdução para explicar que essa meta de primário que o governo colocou na LDO – de zerar o déficit no ano que vem – ela é difícil de ser alcançada com as premissas que a gente tem hoje. 

Claro, que se o Ministério da Fazenda conseguir as receitas adicionais que ele tem pré-anunciado, isso pode render um recurso significativo. Mas é um desafio muito grande zerar o déficit no ano que vem e, portanto, cumprir as metas também dos anos seguintes. No entanto, mesmo que não se cumpram essas metas mais ambiciosas do primário, vai haver o cumprimento das regras de gastos novas – o que já produz um efeito fiscal relevante. 

Acho que o governo precisa detalhar melhor as ações do lado da receita, para que a gente possa incorporar isso em um cenário mais provável de projeções. De todas as medidas, a que eu julgo que vai trazer mais benefícios é a do ICMS, onde o governo vai poder cobrar impostos de empresas que foram beneficiadas por incentivos fiscais nos Estados. 

Portanto, se o governo começar a dar mais concretude, você pode ter um cenário em que essas metas ambiciosas consigam ser observadas. Por enquanto, acho difícil.

B3 Bora: Ainda pelo lado da arrecadação, o ministro da Fazenda tem dito que pretende cortar R$ 150 bilhões em renúncias tributárias para elevar a arrecadação de impostos. Segundo Haddad, esses benefícios chegam a R$ 600 bilhões. Você acha que esse é um dos caminhos? 

Felipe Salto: É uma boa diretriz. O gasto tributário ou renúncia fiscal atingiu um nível que é impeditivo. Esse é um problema que precisa ser enfrentado. Não é uma novidade porque os governos anteriores já tentaram fazer isso. Só que esbarraram sempre nos, entre aspas, donos de cada gasto tributário. Quando eu fui secretário da Fazenda em São Paulo, eu vi isso. Você tem benefícios que vão sendo carregados e que há uma pressão política para eles serem mantidos. 

O Simples Nacional tem os seus padrinhos, a Zona Franca de Manaus, os regimes especiais de cada setor de atividade, a desoneração da cesta básica, as filantrópicas. É uma lista enorme de benefícios tributário. Como que muda isso? A emenda 109, derivada da chamada PEC Emergencial, apresentada em 2019. Ela trazia um artigo com um plano de revisão desses gastos tributários. Só que ele acabou não dando certo porque foi minguado. O ajuste ficou tão gradual que o projeto de lei não deu em nada. 

O ministro Haddad quer passar um pente fino e fazer uma revisão para reduzir esses gastos tributários para ver o quanto é possível recuperar de arrecadação. Isso é positivo. Agora acredito que falta o ministério da Fazenda e a Receita Federal apresentarem os estudos. Qual é o benefício que vai ser reduzido? Qual a lei que tem que ser mudada? Precisa de medida provisória e lei complementar? Precisa mudar a Constituição? Qual é o regramento ou é só uma decisão administrativa? Ninguém vai ser contrário a reduzir gastos tributário. A pergunta é como?

B3 Bora: Pelo lado dos gastos, a nova âncora fiscal prevê regras para o ritmo de crescimento deles. Como você avalia essas normas de despesas?

Felipe Salto: O arcabouço nasceu em bases positivas. O problema são as fragilidades das metas de resultado primário. Uma coisa que ameniza é a proposta que prevê que ao romper a meta de primário, aciona-se um gatilho que leva a um crescimento menor do gasto no ano seguinte. Pelo projeto, a despesa só poderá crescer 70% da variação real da receita corrente líquida acumulada em 12 meses até junho, frente ao mesmo período do ano anterior e a inflação projetada para o ano. 

Se o governo descumprir, a regra de gasto fica mais dura automaticamente. Em vez de ser 70%, vai ser 50%. Isso é bom porque no regramento atual da Lei de Responsabilidade Fiscal, você simplesmente não pode descumprir a meta de primário. Do jeito como é hoje nenhum presidente jamais descumpriu, porque a meta acabou sendo alterada por um projeto de lei enviado ao Congresso. Depois do impeachment da presidente Dilma, isso ficou mais complicado e o teto de gastos acabou ganhando maior importância porque com o descumprimento, você ensejava o crime de responsabilidade. Agora, uma mudança na nova âncora fiscal permite que a meta de primário seja descumprida, sem infração à Lei de Responsabilidade Fiscal. Só que vai haver uma sanção. Aciona-se esse crescimento menor do gasto.

A crítica que eu faço é que ao invés de 70% para 50%, tinha que ser para 20%, uma regra mais dura, com um cenário mais restritivo. Além disso, já que está se permitindo um novo regime em que se descumpre a meta de primário, eu adicionaria também medidas para o próprio exercício, não só para o seguinte. Por exemplo, proibir reajustes salariais, proibir qualquer medida que impactasse a despesa em termos reais. 

B3 Bora: A ministra do Orçamento, Simone Tebet, enviou ao Congresso o projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2024. Pela proposta, o orçamento do governo fica condicionado a um total de R$ 172 bilhões de despesas no próximo ano à aprovação do novo arcabouço. Além desse incremento, o governo também não deveria estar pensando em cortar gastos?  

Felipe Salto: Isso é uma fragilidade do novo arcabouço. Seria importante medidas de ajuste do lado da despesa também. 

A regra dos gastos que falamos é boa porque é factível. Não adianta ficar buscando que a despesa cresça apenas pela inflação porque na hora do vamos ver o governo não consegue cumprir. Foi o que aconteceu com o teto de gastos. Então é melhor ter um plano exequível, mais modesto na questão da regra de gasto, e ao mesmo tempo colocar medidas para ajudar a cumpri-lo. 

É legítimo que o governo atual queira dar um peso para arrecadação, corte de gastos tributários e recuperação de receitas. Isso já é muito bom. 

De volta na história do ICMS, onde o governo vai poder cobrar impostos de empresas que foram beneficiadas por incentivos fiscais nos Estados. A votação foi concluída no Superior Tribunal de Justiça, mas vai ter um desfecho no Supremo Tribunal Federal. É um disparate você ter uma subvenção [benefícios econômicos oferecidos pelo governo] baseada em um benefício tributário que não se sabe o destino – custeio ou investimento – e que acaba ensejando uma erosão da tributação sobre o lucro que é federal. Então o governador do Estado dá um benefício tributário e isso produz uma renúncia fiscal para a União. Isso tem que ser mudado. 

Agora, à parte essas questões da receita, se houver frustração em relação a uma parte desse plano de recuperação arrecadação, o novo arcabouço tem essa saída: que é a regra de gastos. Só que ela precisaria ser mais forte com medidas auxiliares de controle da despesa. 

B3 Bora: O novo arcabouço fiscal agora está no Congresso. É possível adiantar possíveis mudanças que o parlamento pode fazer no texto? 

Felipe Salto: Acho difícil antever o que o Congresso vai fazer, porque a composição do parlamento está bastante diferente. No caso atual, temos os presidentes Arthur Lira (Câmara) e Rodrigo Pacheco (Senado) bastante alinhados com o governo. Isso é positivo para ter um avanço rápido do arcabouço. Ao mesmo tempo tem a esquerda que vai exercer um papel de tentar afrouxar a nova regra e a centro-direita e a oposição que vão querer endurecê-las. 

O meu palpite é que, na média, não vai haver uma tendência geral do Congresso a querer endurecer demais ou afrouxar demais. Vai ser o caminho do meio. E a liderança dos presidentes das casas será importante.

B3 Bora: Para finalizar, queria te perguntar sobre Reforma Tributária. Você acredita que esse deveria ser o próximo grande foco do governo?  

Felipe Salto: Pelo lado do novo arcabouço, sempre fui mais otimista em relação à opinião média dos meus colegas. É a primeira tarefa do ministro Fernando Haddad. Ele e sua equipe estão imbuídos dessa tarefa e sabem da importância da responsabilidade fiscal. Então veio uma boa proposta que só precisa ser aprimorada e acho que temos a oportunidade de se fazer isso é agora.

Em relação a reforma tributária estou mais pessimista. Sou cético diante da forma como está sendo proposta. Há pelo menos duas trincheiras de batalha. Uma é a federativa, que não está resolvida. Não há consenso entre os estados – pior ainda entre os municípios. A outra trincheira é setorial. 

Explico: seriam criados dois impostos a partir de um IVA dual [Imposto sobre Valor Agregado que unifica tributos]. Um IVA subnacional – que juntaria o ISS (municipal) com o ICMS (estadual). E um IVA Federal que juntaria o IPI e outros impostos. Só que você esbarra na questão setorial. O setor de serviços não vai querer esse modelo porque vai perceber um aumento de tributação. A indústria vai gostar porque o setor é muito mais tributado em relação aos outros. Como ela tem uma cadeia de produção mais longa e um sistema de ICMS complexo. O agronegócio é a mesma coisa. Como, então, equacionar todos esses interesses? Não está claro. 

O Bernard Appy, secretário especial da Reforma Tributária, tem um conhecimento muito grande e está fazendo um belo trabalho para discutir as diferentes ideias e polêmicas que vão surgindo. No entanto, não vejo hoje como criar um consenso em torno de um IVA dual. A minha proposta, já desde o ano passado, é ir por etapas. Começando pelo ICMS até a criação de um fundo de desenvolvimento regional para compensar as perdas tributárias.