Entenda a ideia de moeda única do Mercosul e por que ela é difícil de ser implementada
Entenda porque a ideia da moeda única do Mercosul é de difícil implementação diante das disparidades econômicas dos países do Mercosul.
A discussão sobre a criação de uma moeda única entre os países que integram o Mercosul não é nova. Os primeiros debates entre os economistas começaram em 1999 – ano em que o Euro passou a vigorar como meio de pagamento eletrônico entre as 12 nações europeias que aderiram a moeda (a circulação das notas começou em 2002).
Por que a ideia da moeda única do Mercosul não foi para frente?
A ideia de conceber uma moeda única dentro da Mercosul não foi para frente diante de dois fatores principais, segundos os analistas consultados pelo B3 Bora Investir. O primeiro é a instabilidade monetária aguda nas economias que compõem o bloco: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. O segundo é o enfraquecimento do bloco sul-americano, principalmente diante de posicionamentos políticos conflitantes. É o que aponta Acilio Marinello, coordenador do MBA em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios.
“Um dos fatores foi o enfraquecimento e até mesmo uma desmobilização do Mercosul nos últimos anos. O bloco perdeu protagonismo e relevância devido a questões locais e posicionamentos políticos dos países participantes. Sem um programa estruturado no próprio Mercosul, independente e transversal aos governos locais, não há ambiente e condições para avançar com essa discussão [de moeda única]”, explica.
A fragilidade econômica dos países membros – que inviabiliza uma moeda única – passa principalmente pela Argentina. A taxa de inflação acumulada do nosso vizinho em 2022 atingiu 94,8%, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). É o maior valor em 32 anos. Já a taxa básica de juros, para tentar conter a inflação, está em 75% ao ano, de acordo com Banco Central da República Argentina (BCRA).
Dependentes da Argentina
No Brasil, a inflação fechou todo o ano passado em 5,79%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). Já a taxa básica de juros (Selic) está em 13,75% ao ano. Ou seja, uma eventual moeda única, deixaria o Brasil e as outras nações do bloco dependentes da situação fiscal da Argentina. O professor de economia da Fundação Getúlio Vargas, Mauro Rochlin, explica ainda que diante dessas diferenças macroeconômicas, não seria possível estabelecer uma paridade de câmbio frente as outras
moedas do bloco – o que torna a divisa comum inviável.
“A Argentina está enfrentando uma hiperinflação, portanto não há uma estabilidade cambial – o que é um fator complicador para diminuir as diferenças cambiais. Então isso bloqueia a ideia de uma moeda em comum – que ajudaria a ter uma certa estabilidade nos preços relativos, ou seja, no poder de compra de uma mercadoria sobre a outra”, afirma.
Diferente da Argentina, o Paraguai e o Uruguai têm a economia mais parecida com a brasileira. As taxas de inflação e juros, por exemplo, estão em linha com as nossas, como é possível notar no gráfico abaixo:
Para Acilio Marinello, os dois países passam por momentos de estabilidade e crescimento econômico, com níveis de inflação gerenciados e melhores perspectivas futuras se comparados com a Argentina.
“O Paraguai tem se destacado com o crescimento de indústria e serviços, apesar de ainda enfrentar sérios problemas sociais com uma parcela considerável da população em níveis de pobreza. O Uruguai ainda se posiciona com forte atuação no agronegócio – como um dos maiores produtores e exportadores de proteína animal, sendo a principal alavanca do país. Ambos apresentam condições mais favoráveis para adoção de uma moeda única, principalmente pelo cenário macroeconômico mais estável”, explica.
A volta da discussão
O mercado financeiro brasileiro é reticente a criação de uma moeda única para os países do Mercosul diante da fragilidade da economia Argentina, que poderia contaminar negativamente os demais países e a estabilidade macroeconômica de todo o bloco.
No entanto, o debate sobre uma moeda única voltou às páginas da imprensa brasileira no início do mês. O embaixador argentino no Brasil, Daniel Scioli, declarou que discutiu o tema num encontro em Brasília com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT) e hoje o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) está em visita oficial a Argentina, em sua primeira viagem internacional desde que assumiu o novo mandato para discutir, entre outras coisas, a possibilidade de uma divisa única no Mercosul.
Essa não é a primeira vez que uma gestão do governo brasileiro discute o tema. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) também já falou sobre essa questão em sua passagem anterior pelo Planalto. O ex-ministro da Economia, Paulo Guedes, também já defendeu a proposta durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Como funcionaria a moeda única do Mercosul?
A moeda comum do Mercosul não seria o fim das divisas de cada país. Ela serviria como uma unidade de integração e intercâmbio comercial em todo o bloco, como estratégia para acelerar o processo de maior conexão regional. “Ela serviria [moeda única] como uma Câmara de compensação de valores. Essa
moeda poderia ser utilizada entre os governos para concluir os saldos das transações.
Fundamentalmente é uma moeda de troca e não uma divisa circulante como é o peso argentino ou o real brasileiro”, explica o professor da FGV.
Para o coordenador do MBA em Digital Banking da Trevisan Escola de Negócios, o dólar americano ainda é, e deve continuar sendo pelos próximos anos, a principal moeda de formação das divisas de cada país.
“A criação de uma moeda única no bloco deve ter pouca influência na composição das divisas. A moeda única beneficiaria e facilitaria o livre comércio, reduzindo custos de conversão e variação cambial, estimulando o maior intercâmbio de negócios no bloco”, conclui.
Os especialistas afirmam ainda que, assim como na zona do Euro, a moeda seria emitida por um Banco Central do Mercosul. Além de ser o responsável pela emissão e gestão do volume de divisas em circulação, o órgão teria de atuar com os bancos centrais de cada país envolvido, a fim de gerir a política econômica do bloco, respeitando a soberania de cada governo.
“Eu entendo que os esforços existem porque a Argentina é nosso terceiro maior parceiro comercial, atrás apenas da China [primeiro] e dos Estados Unidos [segundo]. Enfim, acho difícil se concretizar a curto prazo alguma coisa”, diz Mauro Rochlin.
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O bem-sucedido caso do Euro
O exemplo mais conhecido de moeda única é o Euro. O processo de criação e implementação da divisa durou cinco décadas.
Começou em 1951, com a formação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço – que gerou um mercado comum da indústria pesada. Depois passou pelo Tratado de Roma, em 1957, que deu origem a Comunidade Econômica Europeia (CEE) e uma tributação única sobre o consumo – um arcabouço fiscal com metas para a dívida pública.
A volatilidade cambial entre os países começou a ser discutida em 1979, com a criação do Sistema Monetário Europeu e o projeto de moeda única finalizado em 1998 com ao estabelecimento do Banco Central Europeu. Um ano depois, as transações comerciais iniciaram a ser pagas em Euro e só três anos mais tarde chega o papel moeda.
“Na época de formação do Euro, havia um ambiente de maior paridade e alinhamento macroeconômico entre os países, além de ter uma moeda local forte equivalente ao dólar [o Marco Alemão], o que oferecia um lastro simbólico para estabilizar a adoção de uma moeda única, gerando credibilidade local e internacional”, explica Acilio Marinello.
O professor da FGV afirma que o êxito do Euro passa principalmente pelas regras de disciplina fiscal que os países tiveram de cumprir para entrar no bloco comercial e depois aderir a moeda única.
“O euro foi o coroamento, o congraçamento de um processo de integração regional. E foi lá na introdução da zona que vieram as questões importantes. Até recentemente, na crise de 2012, aqueles países que foram um ponto fora da curva – como Portugal, Espanha, Itália e Grécia – tiveram de endurecer a sua política fiscal.
Mauro Rochlin destaca ainda que a integração comercial deu aos países um horizonte de crescimento econômico, turbinado pelas trocas externas. “Então, essa combinação de uma política fiscal mais austera, com um processo de integração regional mais intenso, explica o sucesso da moeda do Euro”.
Outros países de moeda única
Na África há dois exemplos de moedas únicas que são divididas em blocos de países. O franco CFA da África Ocidental, é usado por oito nações. São elas: Benim, Burkina Faso, Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Mali, Niger, Senegal e Togo. Todas elas prometeram substituir em 2027 o franco CFA por uma moeda que se chamará Eco.
O franco CFA da África Central, é utilizado por seis países: Gabão, Chade, República do Congo, República Centro-Africana, Guiné Equatorial e Camarões. Todos esses países substituíram as suas divisas após o fim da colonização por países europeus.
Algumas nações também adotaram o dólar americano como moeda oficial.
Exemplos: Panamá, Equador, El Salvador, Timor-Leste e Zimbábue. “Apesar de não ser um acordo ou formação de bloco, a adoção do dólar americano como moeda oficial nesses países traz mais facilidades para o comércio internacional”, conclui Acilio Marinello.
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