Inflação de 100%, disparada do dólar, dívida alta; entenda a grave crise na Argentina
Instabilidades econômicas são recorrentes no país que sofre há anos com a hiperinflação. Situação se agravou em meio a desvalorização do peso e ao aumento da pobreza
O país do Tango tem perdido o ritmo quando o assunto é estabilidade econômica. O fantasma da última crise que atingiu a Argentina há duas décadas voltou a assombrar a população. O temor de colapso da economia passa por uma inflação que está completamente fora de controle, uma nova escalada da cotação do dólar e uma dívida pública que atinge mais de 80% do Produto Interno Bruto (PIB).
Para entender a atual situação dos nossos vizinhos, precisamos voltar ao início da década de 1990. O alto endividamento do país, resultado de anos de governos ditatoriais, começou a ser combatido com uma reforma no sistema bancário, publico e cambial. O auge das mudanças foi a Lei da Convertibilidade, que fixou a relação de um peso argentino para um dólar. O problema é que para fazer valer essa paridade é preciso ter reservas em moeda americana. Para isso, o governo do país passou a contrair diversos empréstimos, o que levou a mais uma crise em 2001.
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O aumento do déficit fiscal, o desemprego novamente na casa dos 15% e a dívida externa assustadoramente elevada, trouxe novamente a inflação para o radar dos argentinos e a maxidesvalorização do peso. Diante deste cenário, o governo passou a limitar o saque da população em 250 pesos semanais – o famoso confisco bancário. Toda essa conjuntura levou à renúncia, em 1999, do então presidente Fernando De La Rúa e ao calote histórico de US$ 102 bilhões pelo governo em 2001.
O economista da XP, Francisco Nobre, explicou em um artigo que a Argentina tem violado o chamado tripé macroeconômico – câmbio flutuante (valor da moeda determinado pela oferta e demanda), meta de inflação e responsabilidade fiscal (contas equilibradas) – essencial para o crescimento de longo prazo. A falta da implantação dessas medidas levou o país a se tornar um dos mais instáveis da América Latina.
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“Estas regras não foram respeitadas ao longo da história recente da Argentina, provocando uma desconfiança crescente em relação à estabilidade de investimentos em títulos de dívida pública, câmbio e poder aquisitivo. Consequentemente, o país entrou em um ciclo vicioso de desvalorização da moeda, alta expressiva da inflação, dívida externa elevada, déficit fiscal crescente, e uma recessão econômica prolongada”.
Importante lembrar que em 2022 a Argentina renegociou a sua dívida com o Fundo Monetário Internacional (FMI), após concordar em criar um plano de reestruturação de longo prazo para dar estabilidade à atividade econômica.
Descontrole inflacionário
A inflação na Argentina atingiu em março uma alta anual de 104,3%, segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). É a primeira vez em mais de 30 anos que o índice de preços do país supera a barreira de três dígitos, maior patamar desde setembro de 1991.
A alta dos preços foi puxada principalmente por itens básicos de consumo dos Argentinos, como roupas (9,4%), alimentos (9,3%), serviços de água e eletricidade (6,5%) e transportes (5,3%).
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“Os dados de inflação são, sem dúvida, muito ruins. Em especial, o impacto da carne foi muito forte, item que subiu 19,5% devido à intensa estiagem que estamos passando”, afirmou, em comunicado, o secretário de Política Econômica da Argentina, Gabriel Rubinstein.
Diante dos números estratosféricos da inflação, o Banco Central Argentino (BCRA) elevou em abril a taxa básica de juros do país em 10 pontos porcentuais. Com isso a taxa de juro nominal atingiu 91% no ano.
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A economista-chefe Latin América da Coface, Patrícia Krause, explica que a inflação elevada no país deriva de desequilíbrios macroeconômicos. Dentre eles está o alto déficit fiscal (mais despesas do que receitas arrecadadas) da União, a inflação maior que a taxa de juros e o controle de preços pelo governo que se mostra ineficaz.
“Essas trajetórias de alta são agravadas pela invasão na Ucrânia , que afetou a inflação globalmente, e pelos controles de capitais de importação. Desde março do último ano, por falta de reservas internacionais, o BC argentino começou a colocar regras mais restritas para que as empresas consigam acessar o mercado de câmbio para pagar importações. Com isso, o país acaba tendo um desabastecimento e isso gera mais pressão sobre os preços. Não há uma solução fácil para essa questão, mas com certeza é necessário o país passar por um ajuste fiscal e monetário”.
Impressão de pesos em outros países
A imagem típica de uma economia com hiperinflação é a população nas ruas com pilhas de notas de dinheiro vivo e a Casa da Moeda imprimindo papel moeda sem parar. A situação da Argentina é tão complicada que a emissão de dinheiro extrapolou as fronteiras.
Só no ano passado, a Casa da Moeda brasileira produziu mais de 600 milhões de notas de peso argentino. O país do tango também “compra” dinheiro da China e de outros países da Europa.
Câmbio depreciado na Argentina
A falta de confiança no governo, comandado por Alberto Fernández e que tem Cristina Kirchner como vice-presidente, também impacta na economia da Argentina e principalmente na moeda.
O dólar paralelo (chamado de blue) bateu recorde na semana passada e atingiu 400 pesos, em um momento em que as reservas internacionais do Banco Central da República Argentina estão praticamente zeradas e a dívida externa está nas alturas. Segundo o ministério da Economia do país, em 2018 as reservas somavam US$ 65 bilhões e no final do ano passado despencaram para US$ 45 bilhões. Já a dívida pública bruta está em US$ 382 bilhões, ou seja, o equivalente a 80,5% do PIB.
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“A falta de confiança na moeda tem relação direta com o derretimento do câmbio. Então você tem a taxa de câmbio oficial, que não flutua livremente, e a inflação disparando. Assim para manter uma reserva de valor, diante do acesso limitado ao câmbio oficial, a população vai para o paralelo”, explica a economista-chefe Latin América da Coface.
Segundo a XP, desde 2015 o peso já perdeu 95,9% de valor em relação ao dólar. Para se ter uma ideia prática, o valor do peso argentino no mercado paralelo vale quase a metade comparado com o câmbio oficial. A situação é tão grave que setores da economia, como o mercado imobiliário, trocaram o peso pela moeda americana. “Nos últimos anos, a Argentina passou por frequentes mudanças radicais de governo, afetando a implementação de políticas econômicas, e dificultando também o avanço de reformas estruturais importantes. Estes eventos também provocaram desconfiança dos consumidores e investidores, o que levou a uma fuga de capital da região”, conclui Francisco Nobre da XP.
Problemas socioeconômicos
Para piorar a situação dos nossos ‘hermanos’, a forte seca que atingiu o país tem trazido problemas para o campo, que é a principal fonte de reservas internacionais para o governo. Os efeitos são devastadores para as colheitas de soja, trigo e milho.
Segundo o governo, as exportações de grãos e derivados alcançaram 43,36 bilhões de dólares (R$ 226,21 bilhões) na safra 2021-2022. No entanto, metade da soja e 35% do milho foram perdidos.
Os problemas no campo, a crise econômica, financeira e política têm levado a protestos em todo o país. A fome se tornou um problema ainda maior para o governo. Hoje 9,2% dos habitantes, ou 44 milhões de argentinos, estão abaixo da linha de pobreza, segundo o Indec.
Alberto Fernández desiste da reeleição
Diante da crise, o presidente argentino Alberto Fernández anunciou no fim do mês passado que não será candidato a reeleição no pleito marcado para outubro. A vice-presidente Cristina Kirchner também já havia dito que não concorreria.
“O próximo 10 de dezembro de 2023 é o dia exato em que completaremos 40 anos de democracia. Neste dia, entregarei a faixa presidencial a quem quer que seja escolhido legitimamente nas urnas pelo voto popular”, disse Fernández em um vídeo publicado no Twitter.
Comércio entre Argentina e Brasil
A Argentina é o terceiro maior parceiro comercial do Brasil, atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Grande aliado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Alberto Fernández, se encontrou com o brasileiro nesta terça-feira, 02/05, em Brasília. Na pauta do encontro, a possibilidade de o Brasil acertar linhas de créditos para exportações brasileiras ao país vizinho.
Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, os empréstimos em discussão serão destinados a empresas argentinas que compram produtos exportados por companhias brasileiras. Segundo Haddad, esses financiamentos teriam garantias, que poderiam ser executadas no caso de não pagamento pelos compradores de produtos.
Importante pontuar que o auxílio brasileiro é uma das ações que o governo argentino tenta para enfrentar essa crise econômica que reflete na força política de Fernández.
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