Após crise na Americanas, saúde do varejo brasileiro preocupa mercado
Novas renegociações de dívidas, problemas de gestão e falências acenderam o alerta sobre o desempenho das empresas. Juros altos e consumo fraco ampliam dificuldades
A crise na Americanas (AMER3), que eclodiu no início de 2023, acendeu o alerta no mercado financeiro sobre a saúde das empresas varejistas brasileiras. A principal preocupação é o tamanho da crise no setor – medida pela aceleração no nível de endividamento das companhias. O impacto, após o aumento no ritmo de empréstimos, veio da disparada dos juros entre 2015 e 2016 e 2021 e 2022.
Em janeiro, após a Americanas relatar um rombo contábil de R$ 40 bilhões e entrar em recuperação judicial, foi a vez das Lojas Marisa (AMAR3) apontar dificuldades financeiras. A companhia anunciou, em fevereiro, a renegociação de dívidas brutas de curto prazo e contratou a BR Partners e Galleazzi & Associados para ajudar nesse processo e na reestruturação interna de custos.
O valor das dívidas das Lojas Marisa no curto prazo, segundo fontes, pode chegar a R$ 300 milhões. Após à divulgação do problema nas contas, veio o anúncio da saída do CEO Adalberto Pereira Santos. Ele foi substituído por João Pinheiro Nogueira Batista – também diretor de relações com investidores e membro do conselho de administração.
A varejista de roupas também enfrenta problemas para pagar o aluguel de imóveis. A Kinea Renda Imobiliária (KNRI11) comunicou ao mercado que não recebeu da Marisa o valor do aluguel de janeiro de um condomínio logístico localizado em Itaquaquecetuba, interior de São Paulo. O mesmo aconteceu com o fundo imobiliário Brasil Varejo (BVAR11).
+ Afinal, qual é o risco do crédito privado?
A varejista de móveis e acessórios de decoração Tok&Stok passa pelo mesmo problema. A empresa recebeu um pedido de despejo pelo não pagamento de aluguel do empreendimento Extrema Business Park I, em Extrema, sul de Minas Gerais. Segundo o jornal Valor Econômico, a companhia também busca uma solução para seu endividamento e negocia com credores. Para isso, contratou a Alvarez & Marsal – consultoria especializada em processos de reestruturação.
Outro exemplo de empresa com problemas financeiros no setor é a Livraria Cultura que teve sua falência decretada pela Justiça – uma ação que começou em 2018 com dívidas, na época, de R$ 285,4 milhões. Uma liminar suspendeu o decreto de falência da empresa poucos dias depois, mas o imbróglio, no entanto, continua.
No caso da Saraiva, concorrente direta da Cultura, a companhia segue em recuperação judicial, mas sofre com constantes decisões judiciais que impedem a realização de uma Assembleia Geral Extraordinária (AGE). Dentre os motivos está o impasse que envolve os acionistas sobre os termos de um aumento de capital mediante conversão de créditos, em complemento a uma capitalização que foi aprovada em setembro do ano passado.
A companhia – que já foi a maior rede de livrarias do país – entrou em recuperação judicial em 2018. Em 2022, sua dívida estava em R$ 259,7 milhões – sendo R$ 179,8 milhões com instituições financeiras, segundo o balanço da empresa.
Juros altos e consumo fraco
A lista de companhias em busca de renegociação de dívidas, reestruturação do patrimônio financeiro e proteção judicial foi agravada por fatores operacionais e de gestão, mas também macroeconômicos.
Os dois principais problemas são a alta da taxa básica de juros e a forte queda no consumo. A Selic escalou de 2% ao ano no início de 2021 para 13,75% ao ano desde agosto de 2022, seu maior patamar em seis anos – o que aumenta o custo do crédito. A inflação elevada – que está acima do teto da meta perseguida pelo Banco Central nos últimos dois anos – afetou a retomada do consumo ao provocar a perda de renda dos brasileiros.
A head de análise fundamentalista da Benndorf Research, Niels Tahara, explica que as varejistas mais endividadas são as mais afetadas pelo cenário econômico. O setor segue pressionado, com resultados ainda ruins.
“Quando estava muito baixa a taxa de juros incentivou empresas a tomar crédito sem considerar o pior cenário, que é o atual. Muitas acabaram tomando dívidas demais e sofrem agora em um cenário econômico mais adverso. Todavia, não vemos riscos de quebra no setor para as principais empresas, como Magazine Luiza (MGLU3) e Via (VIIA3)”.
+ O que acontece com as ações das empresas em recuperação judicial listadas na bolsa?
A alavancagem financeira – mecanismo em que uma companhia usa mais dinheiro que o disponível para manter ou expandir suas operações – é um método comum entre as empresas varejistas. Desde 2015, o dispositivo é usado com mais frequência e consiste em manter dinheiro em caixa por meio de empréstimos de bancos.
O diretor-geral da Faculdade do Comércio de São Paulo (FAC-SP), Wilson Rodrigues, explica que o setor se acostumou com a alavancagem nos últimos dez anos para fazer capital de giro – prática comum até internacionalmente. Entretanto, alerta que o mecanismo foi usado de uma forma um tanto quanto desenfreada.
“O varejo brasileiro se acostumou a formar capital de giro e basear o seu relacionamento com fornecedores majoritariamente com dinheiro de terceiros. Com o encarecimento do crédito, isso se torna um problema grande”, diz.
Para resolver a questão, segundo Wilson, o setor terá de rever a composição do seu capital e irá precisar de uma articulação sistêmica entre bancos e poder público para encontrar um equilíbrio.
“Os bancos e as varejistas não querem perder dinheiro, e o governo vai precisar arbitrar um caminho que seja satisfatório. O Poder Judiciário terá um papel fundamental nessa história para garantir, sobretudo, a manutenção de empregos. Se houver fraude, evidentemente, isso terá de ser averiguado”, completa o diretor-geral da FAC-SP.
A head de análise fundamentalista da Benndorf Research explica ainda que o aumento do endividamento das companhias aconteceu por conta da alta competitividade no setor – que demanda abundantes recursos para financiar a abertura de lojas, novas tecnologias e, principalmente, o capital de giro.
“A principal solução para as empresas é a reestruturação da dívida, com negociação ante os credores, assim como corte de custos e despesas para que as operações possam sobreviver”, completa Niels Tahara.
O que esperar do varejo para 2023?
O cenário neste ano é considerado desafiador para as empresas varejistas e depende da evolução da economia e do aumento do consumo. Para melhorar esse ambiente, o diretor-geral da FAC-SP aponta como essencial que a Reforma Tributária seja aprovada no Congresso Nacional.
“Precisa ser uma reforma tributária que melhore as condições de competitividade das empresas brasileiras – o que gera mais empregos e renda. Com as pessoas podendo consumir mais, o varejo performa melhor”, conclui.
No caso específico das lojas Americanas, segundo a especialista da Benndorf Research, o processo de reestruturação deve ser longo e, por enquanto, sem grande visibilidade de que a empresa realmente consiga sair da recuperação judicial.
“Além da necessidade de aporte de capital e de uma renegociação com credores que deve ser bastante difícil, a companhia precisa realizar a venda de ativos e provavelmente converter parte da dívida em ações, o que diluiria muito os acionistas”.
Impacto para o investidor
Os problemas na Americanas e o terremoto que parece abalar as estruturas das varejistas levou muitos investidores a se perguntar: o que fazer? Os economistas são unânimes em dizer que é preciso cautela neste momento com as ações das varejistas. A recomendação é ter sempre uma carteira diversificada.
“Temos uma visão pessimista para as varejistas e recomendamos ficar de fora. A exceção são empresas posicionadas em um nicho de renda mais alta ou que fornecem produtos essenciais”, recomenda Nields Tahara.
Pedidos de recuperação judicial
O número de empresas de todos os setores que pediram recuperação judicial no ano passado caiu na comparação com 2021, segundo um levantamento da Serasa Experian realizado com base nos dados de fóruns, varas de falência, Diários Oficiais e da Justiça dos estados.
Foram registrados 833 pedidos de recuperação judicial em 2022 – redução de 6,5% em relação aos 891 requerimentos no ano anterior. No entanto, a queda foi inferior à registrada em 2021 na comparação com 2020 – ano em que a pandemia teve maior impacto sobre as finanças das companhias brasileiras.
O setor do comércio varejista ficou em segundo lugar – entre os quatro avaliados – com o maior número de pedidos de recuperação judicial no país em 2022. Houve um leve aumento na comparação com o ano anterior. A liderança ficou com o setor de serviços. (acompanhe o gráfico abaixo)
PEDIDOS DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Fonte: Serasa Experian
Relembre casos de falência no varejo brasileiro
Mappin – Chegou ao Brasil em 1913 e se instalou na cidade de São Paulo com a proposta de ser uma loja de artigos de luxo. Com a crise de 1929, a companhia mudou sua concepção e passou a adotar um modelo de varejo mais popular. A partir da década de 1990, com o aumento da concorrência, passou a comprar lojas de empresas rivais. Em 1995, teve prejuízo de R$ 20 milhões e um ano depois foi comprada pelo empresário Ricardo Mansur – que também administrava a Mesbla, outra grande varejista. Os negócios não deram certo e ambas faliram.
Mesbla – A empresa começou suas operações em 1912 e viveu seu auge durante a década de 80. Assim como o Mappin, a concorrência e a popularização dos shoppings levou a loja, que tinha como bordão ‘ter de tudo’, a enfrentar problemas de caixa. A hiperinflação da década, somada à decisão de estocar mercadorias em excesso para evitar o constante reajuste dos preços, levou a empresa a ter uma dívida de R$ 1 bilhão. A Mesbla faliu em 1999 e, 23 anos depois, retornou ao mercado por meio do e-commerce. A companhia chegou a ter 180 lojas e mais de 28 mil funcionários em todo o Brasil.
Arapuã – A companhia fundada em Lins, no interior de São Paulo, e que tinha como slogan estar ‘ligadona em você’ , foi uma das maiores varejistas do país: chegou a ter 220 lojas. Especialista na venda de produtos eletrônicos, a Arapuã viu no aumento de juros o principal entrave para as suas operações por conta da crise na Ásia, no fim de 1990. O aumento da inadimplência elevou suas dívidas à marca de R$ 1 bilhão em 2002. A empresa se comprometeu a pagar os credores em dois anos, mas não conseguiu e teve sua falência decretada. Em 2009 a companhia tentou recorrer à recuperação judicial, mas o pedido foi negado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).