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Evite as dívidas: “só planeje os gastos com a sua renda disponível”, diz Miguel Ribeiro de Oliveira

Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor executivo de estudos e pesquisas da ANEFAC (entidade que reúne executivos de finanças e economia)
Miguel José Ribeiro de Oliveira, diretor executivo de estudos e pesquisas da ANEFAC (entidade que reúne executivos de finanças e economia)

Nos últimos anos, muitos brasileiros deixaram de pagar as suas dívidas e entraram para as estatísticas de inadimplência das empresas de proteção ao crédito. Em um ano, o número de inadimplentes avançou de 64,7 milhões em janeiro do ano passado para 70,1 milhões em janeiro de 2023, segundo a Serasa. Em um intervalo de tempo menor, apenas entre dezembro de 2022 e o primeiro mês deste ano, foram 600 mil pessoas a mais com o nome restrito no país.  

E não foi só a inadimplência que cresceu, o valor do endividamento também. Em média, cada inadimplente deve R$ 4.612,30. Em janeiro de 2022, era R$ 4.022,52 – crescimento de 14,7% no período. Em relação a idade, os brasileiros entre 26 e 40 anos são os que mais devem e representam 34,8% do total de endividados do país.

A parcela de famílias nessa situação subiu de 78% para 78,3% entre janeiro e fevereiro deste ano. Os dados são da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).

As condições financeiras cada vez mais apertadas tem impactado de forma profunda a concessão de crédito no país, além do custo dos empréstimos. Dentre os principais problemas estão os juros e a inflação ainda em patamares elevados e o desemprego que atinge nove milhões de brasileiros. 

O diretor executivo de estudos e pesquisas da ANEFAC (entidade que reúne executivos de finanças e economia), Miguel José Ribeiro de Oliveira, aponta ainda que as dificuldades recentes de grandes companhias também impactaram no encarecimento dos empréstimos. 

“Teve a fraude da Americanas, a nova recuperação judicial da Oi, as lojas Marisa e algumas outras grandes companhias que estão com problemas de liquidez. Com isso, os bancos são obrigados a fazer provisões desses valores por serem afetados no seu resultado, e soltam menos recursos para emprestar, o que agrava ainda mais o quadro de liberação de crédito”, explica.

Diante desse quadro, o governo federal deve lançar em breve o programa ‘Desenrola’ – para a renegociação de dívidas das pessoas físicas. A medida é uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e tem sido desenvolvida pela equipe econômica do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

+ Desenrola: tudo sobre o novo programa de renegociação de dívidas do governo

Veja abaixo a entrevista concedida pelo especialista ao B3 Bora Investir:

Bora Investir: A inadimplência atinge 70 milhões de brasileiros e quase 80% das famílias estão endividadas. Como o país chegou nesses números tão alarmantes?

Miguel José Ribeiro: É uma sequência de fatores que vem desde que a pandemia chegou e retirou vários empregos ou subempregos. Você teve muitas empresas que pausaram contratos e demitiram. Então a pandemia reduziu substancialmente o crescimento econômico no mundo inteiro, mas no Brasil principalmente. 

De lá pra cá, outros fatores contribuíram com o desarranjo da cadeia produtiva, o que provocou uma inflação mais alta que corrompeu a renda da população. Essa alta dos preços fez o Banco Central subir a Selic [taxa básica de juros] a patamares que chegaram a 13,75% ao ano

Juros mais altos acabam encarecendo as dívidas das famílias e nesse quadro se deu a queda na atividade econômica, o desemprego elevado e a redução substancial da renda. Então este conjunto todo acaba aumentando o endividamento das famílias que bateu recorde e fez a gente chegar até aqui.

Bora Investir: Diante desse cenário, o mercado brasileiro mostra sinais de agravamento das condições de crédito. Você acredita que tendo em vista esse quadro, há uma tendência de elevação das taxas de juros nas operações de crédito nos próximos meses?

Miguel José Ribeiro: Infelizmente, sim. Não só por conta desse ambiente, mas do endividamento maior das famílias que leva os bancos a serem mais cautelosos e restritivos no crédito. 

Tem também um componente adicional que foram os problemas com algumas empresas. Teve a fraude da Americanas, a nova recuperação judicial da Oi, as lojas Marisa e algumas outras grandes companhias que estão com problemas de liquidez. Por terem seus resultados afetados, os bancos são obrigados a fazer provisões desses valores e, por consequência, destinam menos recursos para empréstimo, o que agrava ainda mais o quadro de liberação de crédito. 

Endividamento elevado das famílias de um lado, empresas com dificuldades financeiras de outro, você tem uma maior seletividade dos bancos e isso retira recursos do sistema financeiro e encarece o crédito. 

Nesse ambiente de maior risco, as taxas de juros podem subir, mesmo com a Selic em estabilidade. Nós vimos isso nesse período em que os juros básicos ficaram parados em 13,75% e as taxas para as operações de crédito, tanto para empresas como para as famílias, subiram.

Já a depender desse quadro, naturalmente esperamos que o Banco Central possa tomar algumas medidas como a redução de compulsórios (ferramenta que obriga bancos a depositarem parte dos recursos captados dos clientes em uma conta do BC) como forma de dar mais dinheiro para poder emprestar.

Possivelmente o Banco Central, até pressionado pelo governo, mesmo sendo independente, em algum momento vai iniciar a redução da taxa básica de juros. Isso deve começar a acontecer mais para o meio do ano e pode amenizar esse quadro.

Bora Investir: A inadimplência recorde atinge mais a faixa entre 26 e 40 anos – quase 35%. Por que esse grupo é o mais atingido?

Miguel José Ribeiro: O público mais velho é um pouco mais cauteloso na hora de se endividar. Ele pensa e planeja mais. Já os jovens, normalmente gostam de ter acesso ao bem de imediato e não se preocupam com qualquer tipo de planejamento financeiro. Ainda mais especificamente nessa questão do endividamento, que é contínuo em todas as camadas da sociedade, tanto de baixa quanto de alta renda.

Quando o mercado está bem e o crédito barato, o jovem consegue viver normalmente. No entanto, quando há uma queda na renda, esse perfil imediatista acaba por ser o mais prejudicado por falta de planejamento.

Bora Investir: Para ajudar esse público que está negativado, o governo federal vai lançar em breve o ‘Desenrola’ – programa de renegociação de dívidas. Qual a sua opinião sobre essa iniciativa do governo? Acha que será apenas um programa de transferência de renda?

Miguel José Ribeiro: O nível de inadimplência elevado em um volume tão grande da sociedade acaba tendo impacto inclusive na própria economia, pois as pessoas não consomem e o país não cresce. Então o governo tem obrigação, em um quadro tão generalizado de endividamento, de criar ferramentas para ajudar a resolver esse problema.

Com o Desenrola, podemos fazer uma analogia com o Pronampe – feito para as empresas na época da pandemia, quando havia um quadro de falta de crédito com a queda brutal do faturamento. O governo, na época, ofereceu crédito de longo prazo com uma taxa de juros diferenciada por meio de um Fundo Garantidor. Em um ambiente desses, se o governo não ajuda, os bancos não emprestam. O programa não foi uma invenção brasileira, vários países tiveram iniciativas iguais para dar garantia aos credores ou bancos que podiam emprestar naquela condição. 

O Desenrola, portanto, é basicamente esse tipo de programa só que voltado para as famílias. É claro que é muito cedo para a gente falar, precisamos ver como ele vai funcionar e o nível de adesão. Entretanto, é um programa importante. Vale destacar que muitas das dívidas não estão em bancos e sim em empresas de consumo – como energia, telefonia e etc. Mas tendo em vista o volume alto de inadimplência, os bancos deverão aderir. 

Sobre a segunda parte da sua pergunta: não acho que seja uma transferência de renda, pois vivemos um caso em que há um endividamento grande e o governo precisa dar uma solução e vendeu isso na campanha. 

Importante destacar também a questão do valor dessas dívidas que foram elevadas pelos juros acumulados ao longo do tempo. Tem famílias que deviam R$ 1 mil e agora a dívida já está em R$ 10 mil. Então precisa ver qual o desconto que vai ser auferido. De novo, estamos em um ambiente de desemprego alto e queda da renda. Então a circunstância para renegociar precisa ser medida pelas condições de cada pessoa para fechar um acordo e conseguir pagar. Se for à vista, pedir um bom desconto. Se for parcelado, medir a capacidade de assumir esse pagamento à prestação. 

Portanto é uma boa medida, mas é necessário aguardar para ver o resultado de adesão e as condições que eventualmente serão apresentadas para esses devedores.

Bora Investir:  Seguindo nessa questão das condições de pagamento. Como conseguir um bom acordo e sair do vermelho?

Miguel José Ribeiro: O primeiro passo antes aderir a qualquer parcelamento é entender qual é o valor da dívida? Segundo: o banco nunca vai lhe oferecer uma condição melhor no primeiro momento, porque é uma negociação. Portanto para parcelar, é preciso barganhar e deixar claro o que você pode pagar. Terceiro, é preciso mostrar interesse em negociar e ir atrás da solução.

Resumindo: saiba o valor da dívida, o desconto que o banco está dando sobre ela, o prazo de pagamento e a taxa de juros que vai ser embutida – quando for um parcelamento. Se for à vista, o importante é saber o quanto a pessoa devia e o valor que o banco estaria apresentando agora para liquidá-la. E sempre lembrando: quando for fazer parcelamento, o devedor precisa saber se vai ter capacidade de pagar.

Bora Investir: Para o brasileiro que não quer de jeito nenhum entrar nessas estatísticas. Quais dicas você daria para elaborar um bom orçamento familiar e evitar ficar endividado?

Miguel José Ribeiro: A base de tudo para não cair no endividamento é fazer um orçamento doméstico de forma que a pessoa gaste dentro do que ele ganha, nunca além. 

Então primeiramente organize a sua vida financeira elaborando um orçamento como forma de definir quais são as suas reais necessidades. Segundo: planeje todos os seus gastos considerando sempre a sua renda disponível e não a renda disponível mais crédito. Normalmente as pessoas fazem a conta ‘eu tenho um salário de R$ 5 mil, mas tem um limite de crédito de cheque especial no valor de tanto’. Isso já é um erro. 

É importante também ficar atento, principalmente a dívida de longo prazo que compromete a renda ao longo do tempo. Além de evitar aquelas linhas de crédito mais punitivas que são cheque especial e cartão de crédito.

Lembre-se que toda a vez que você gasta mais do que ganha ou ficará inadimplente – e com isso sujeito a todas as consequências de ter o nome negativado, não tendo acesso a qualquer tipo de crédito – ou terá que recorrer a empréstimos e assumir o pagamento de juros.

Bora Investir: Com um orçamento familiar equilibrado e dívidas pagas. Quais os primeiros passos para começar a poupar?  

Miguel José Ribeiro: É preciso ter como regra guardar uma parte do seu salário – o máximo possível – todos os meses. Normalmente é bom pegar 10% dos ganhos, colocar em uma poupança, fundo de renda fixa ou outro investimento e deixar como uma reserva estratégica.

Durante a pandemia, um dos grandes problemas do endividamento foi a pessoa perder o emprego, deixar de ter uma renda e não ter nenhum dinheiro guardado. Então é necessário fazer uma poupança para enfrentar momentos de dificuldades. As vezes acontece uma doença não prevista, você bate o carro e precisa consertar. Imprevistos acontecem e se as pessoas não poupam, em uma emergência, lá vai o cartão de crédito. 

Portanto, preferencialmente gaste menos do que tem de renda para criar uma reserva financeira e fazer frente a eventuais gastos extras não previstos ou até para planejar a compra de algum bem no futuro. E invista também na sua previdência.